A Favorita | Crítica | The Favourite, 2018
Mostrando o esquema dos poderosos usando tanto comédia quanto trama política, A Favorita é um filme de época que tem ecos mesmo nos nossos tempos.
Um filme de época com as próprias regras do diretor, comédias, verdades e mentiras – tudo isso embalado pela política deixa A Favorita bem apropriado para o nosso cenário atual, onde temos que cada vez mais ser atentos para não nos deixarmos levar por somente o que ouvimos. Além da qualidade técnica e da atuação do trio principal, é importante notar que mesmo esse sendo um conto do século XVIII, Lanthimos traz seu trabalho mais acessível, mas não menos importante pela atemporalidade e universalidade dos temas tratados. Ainda que na posição confortáveis da poltrona do cinema, somos colocados como invasores de segredos da corte por meio das câmeras do diretor grego, descobrindo coisas que nenhum chefe de estado gostaria que fossem revelados.
Numa rápida introdução, um fator importante para um filme que não segue o tradicional esquema e usa da dinâmica durante duas horas, mostra a primeira favorita da Rainha Anne (Colman), Sarah (Weisz), e como ela já está numa posição superior na corte da Grã-Bretanha. Para fazer evidente o ar de superioridade dessas personagens, Lanthimos coloca sua câmera num ângulo bem baixo, o que nos força olhar essas duas personagens numa posição incomodamente inferior, como se não pertencêssemos àquela realidade – o que é verdade. Então, somos tão intrusos naquele mundo quanto Abigail (Stone), apesar de seu passado de maior fortuna. Enlameada e já causando inveja pela sua beleza, a jovem está tão perdida quanto quem assiste.
Nessa delineação de castas e realidades, também é preciso se deter um pouco na maneira que Lanthimos conta a história e como ele usa as lentes para isso. Notamos que o grego passeia entre grandes angulares, que podemos dizer que são as lentes comum, para aquelas de efeito olho de peixe, uma liberdade artística que nos tira do classicismo para uma modernidade. Considerando que o efeito da lente é muito similar com algumas câmeras de vigilância, a diferença visual nos coloca ainda mais como intrusos daquela corte, e que sabemos seus segredos somente porque não sabem que estamos lá. Algo parecido com a cena que Abigail presencia na escuridão entre Anne e Sarah, e ainda assim de maneira diferente.
A primeira vez que Lanthimos coloca as câmeras mais perto do rosto dos personagens, e também num nível mais comum por assim dizer, é quando Abigail já caiu nas graças da Rainha e começa a praticar tiro esportivo com Sarah. As discussões das duas acontecerá ali e a cor do figurino diz bastante sobre esse jogo das duas – como peças num tabuleiro de xadrez, uma está de preto e a outra de branco, ambas com armas na mão, usando frases com significados ocultos para afirmar quem tem mais poder. Sarah tem toda uma história com Anne em seu favor, enquanto Abigail tem o poder da juventude do seu lado. Esse conflito se dará no campo do coração da rainha, uma mulher com um passado triste e que se comporta quase como uma criança.
A dor física da rainha Anne é um reflexo de uma alma atormentada pela perda dos filhos e a atração dele por Sarah e Abigail vem desse desespero. E é um jogo perigoso esse que a prima recém-chegada joga, principalmente pela falta de contatos que a jovem tem, algo que aparece na tentadora proposta de Robert Harley (Hoult). Ainda inocente e acreditando que a subida na escada social da corte poderia ser feita de maneira correta, a trama de Lanthimos coloca em xeque os nossos próprios princípios, se faríamos diferente naquela posição. Seja na questão de como se tratamos os outros ou das relações de poder, como Abigail mostra ao querer sair da lama que foi jogada na primeira vez que a vimos.
Há uma grande diferença entre sofisticação e riqueza e Lanthimos, mais uma vez, usa da técnica para mostrar isso. Por ser um filme dinâmico, o diretor usa a câmera lenta apenas em momentos de frivolidade, onde esses personagens que tem um grande poder nas mãos podem perder tempo com corridas de patos ou atirar tomates num pobre coitado que tem que ficar nu e rindo enquanto recebe as maldosas investidas de seus superiores. Isso não acontece com Abigail ou Sarah, e nem mesmo com Anne, mesmo que a rainha faça algumas brincadeiras com sua velha amiga. Para esse trio, as coisas são mais sérias e pela velocidade do jogo, elas não se podem dar ao luxo de perder tempo – de novo, a questão da velocidade da trama.
Com tudo isso dito, é importante lembrar outro paradigma quebrado por Lanthimos. Se lembrarmos dos grandes filmes de época, é mais fácil encontrarmos produções que focam mais em reis do que rainhas – e onde é mais fácil encontrar mulheres em posições subalternas, seja na cozinha, serventes ou a donzela em perigo. Apesar da trama ser dirigida e escrita por um homem, as três personagens não necessitam de personagens masculinos para subir, nem mesmo servem como escada para eles. Na trama, eles são meros acessórios para elas: Sarah usa da posição do esposo para controlar Anne. Abigail usa Harley para voltar à posição privilegiada que um dia teve ao se casar com um nobre.
Ainda no esquema do jogo, é um tanto divertido ver como cada uma das personagens faz seus movimentos no tabuleiro. Sarah é mais inteligente, prefere domar a rainha por meio de manipulação e se porta numa posição oculta, como podemos ver num dos discursos que Anne dará ao parlamento. Ela se senta atrás da rainha, num lugar de destaque, com menor incidência de luz, mas não com menos poder, puxando alguns fios para que seus planos prosperem. Abigail, menos experiente, prefere a bajulação, um método menos sofisticado, porém rápido por mexer com a autoestima da rainha. Em momentos de desespero, tanto Abigail quanto Sarah partem para investidas mais diretas uma contra a outra, mostrando que as mulheres podem ser tão terríveis como qualquer outro personagem masculino com atos terríveis em outras histórias.
Assim como qualquer jogo, há vencedores e perdedores – mas apenas uma rainha, algo que a vencedora de A Favorita é lembrada na conclusão da história. Ao esquecer de tratar os pequenos da maneira como ela gostaria de ter sido tratada, Anne mostra que todos aquelas tramas e palavras não queria dizer que Sarah e Abigail eram rainhas disputando o poder no tabuleiro, mas no máximo peças como o cavalo, que pode pular algumas casas, mas não tem o poder de ir para qualquer direção. Isso, mais uma vez, remete a nós mesmos e onde nos encaixamos no grande esquema das coisas: os poderosos continuam com seu poder, e os humildes ainda na posição de servidão.
Crítica publicada originalmente na cobertura da 42ª Mostra Internacional de Cinema
Elenco
Olivia Colman
Emma Stone
Rachel Weisz
Nicholas Hoult
Joe Alwyn
Direção
Yorgos Lanthimos
Roteiro
Deborah Davis
Tony McNamara
Fotografia
Robbie Ryan
Trilha Sonora
Komeil S. Hosseini
Montagem
Yorgos Mavropsaridis
País
Irlanda
Estados Unidos
Reino Unido
Distribuição
Fox Searchlight Pictures
Duração
120 minutos
Data de estreia
24/jan/2019
Na Inglaterra do século XVIII, a nação está em guerra com a França, e a frágil rainha Anne é constantemente dominada pela amiga Sarah. Isso até a chegada de Abigail, uma jovem e nova serva que encontra um espaço para ascender na corte e tomar o lugar da antiga favorita.
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