Se a Rua Beale Falasse | Crítica | If Beale Street Could Talk, 2018
Falando de esperanças e de como um sistema todo é feito para perseguição, Se a Rua Beale Falasse é um daqueles filmes que precisam ser revisitados.
Há dores e há uma dose de esperança em toda nova vida que chega. E o paralelo com um parto é a base de Se a Rua Beale Falasse. A comovente obra é um daqueles resumos, que vale a pena visitar de vez em quando, sobre como é difícil ser negro nos EUA, um país onde essa etnia é bem menor que no Brasil, menos de 15%, mas que representa 35% de sua população carcerária. Também é uma história de amor e até onde podemos ir em busca da verdade e como a vida fica tão mais fácil sem pré-julgamentos. Entre desejos simples e complexos, essa janela da vida pode não ser a mesma da maioria de nós, mas é tão bom quando o cinema traz esse recorte que é quase um dever moral apreciar tais momentos.
Desde o primeiro instante e fugindo de alguns clichês, Jenkins introduz o conto de Tish (Layne) e Fonny (James) de maneira poética e não-linear. Pelos olhos dela, e por meio de muitas narrações, a história é costurada como lembranças da personagem, indo e voltando no tempo. Porém, a introdução do filme é como uma metáfora de uma época melhor. Nessa cena, que começa com uma benção simbólica com a câmera num plongé, o casal é embalado por uma valsa, cores cálidas na fotografia e se complementando no figuro – o azul e o amarelo vão fazer mais sentido ainda na cena seguinte onde o clima dado pela fotografia destoa desse devaneio.
Já na realidade que se segue, notamos que o amarelo está na cor das paredes da prisão onde Fonny está encarcerado e que ele mesmo veste azul – mais pastel, é verdade. E para mostrar que não veio para brincar e que está querendo fazer cinema de verdade, Jenkins veste Tish de verde, que é a combinação do amarelo e do azul. Estamos só no começo do filme e é curioso notar que a narração off é praticamente dispensável. Se fôssemos extrapolar os limites da fala, tampouco seria preciso que Tish dizer que está grávida, pois seu figurino já disse isso. O texto falado é um artificio paliativo que, mesmo que tenha um motivo para existir, poderia ser diminuído.
A primeira parte acaba sendo a mais tensa da história, mesmo com Fonny preso. Por se tratar do ponto de vista de Tish, só sabemos de parte da história dele lá dentro, coisas que o personagem permita que saibamos. Do lado de fora, Tish tem uma bomba relógio e ter que contar aos pais sobre uma gravidez fora do casamento foi desafiador. Mas a ficção tem suas vantagens, e mesmo sabendo que a maioria das famílias não receberia bem a notícia, vemos na obra de Jenkins – adaptando Baldwin – a diferença que o apoio faz. Sabendo que a vida da filha não estava fácil por ter o namorado injustamente preso, Sharon (King) e Joseph (Parris) comemoram essa nova vida.
O diretor, no entanto, não nos deixa esquecer da dureza que é a realidade, seja introduzindo fotos reais de abordagens e da vida dos negros nos EUA, ou na ficção quando a mãe de Fonny amaldiçoa a gravidez. E já que a vida é difícil por si só, alguns entraves são tirados da narrativa, como parte da família de Fonny que não gosta da notícia. É como se a história dissesse para nos focarmos nas boas coisas e deixar as negativas para trás. Pode parecer conversa fiada de algum livro de autoajuda, mas é uma atitude libertadora não nos prendermos por tradicionalismos – como, por exemplo, forçar uma relação com alguém apenas por essa pessoa ser família.
Apesar do falatório de Tish ter sentido no começo, como se a personagem enrolasse a plateia até descrever, com certa vergonha, sua primeira relação sexual – e não necessariamente a de Fonny –, o artifício narrativo acaba por cansar. Depois desse momento dos dois, a voz de Tish falando dos seu dia-a-dia até diminuí, mas não há motivo para Jenkins para continuar. Entendemos que ela está com dores por causa da gravidez, que está enjoada, que os pais dela e de Fonny estão fazendo trambiques para dar uma vida melhor aos filhos. E não é como se o diretor não soubesse trabalhar de outro jeito. É só ver como a cena de sonho que acontece num metrô é construída e com apenas alguns segundos mostra o maior medo de Tish.
Um discurso muito comum em quem nega que existam coisas como racismo, feminicídio ou perseguições a qualquer tipo de minoria é que esses grupos buscam algum tipo de privilégio. Correndo o risco de falar com que não compartilha dessa visão, a história de Baldwin e Jenkins demonstra bem o contrário. Na verdade, o que as pessoas querem, em geral, são as coisas mais simples da vida. Podemos viver num lugar onde se brada o direito de autodefesa onde a segurança pública é falha – e aqui não é uma questão de ser válido ou não – mas a pessoa comum com um salário baixo prefere dar dignidade para quem se quer bem.
Esses desejos são refletidos em três frentes. Uma é a missão que Sharon assume, a de procurar a mulher quem Fonny acusou de estupro. O desejo dela vem de uma esperança, a de que a filha e ela são boas juízas de caráter e, impulsionados por essa nova vida que está chegando, venham também os ventos da mudança. A segunda é o encontro inesperado de Fonny com o amigo de longa data, Daniel (Henry). Essa nova costura com o agora ex-presidiário vem para compartilhar a experiência desse personagem que, lembrando seu xará bíblico, também foi jogado na cova dos leões. “Mas nesse país não gostam de pretos” diz um pouco esperançoso Fonny, quando seu desejo de ter um lugar para morar é negado tantas vezes.
Mas o desejo que mais dói, ainda mais que as pancadas que vemos que Fonny levou, é a expressão dele em uma das visitas de Trish quando ele diz que logo vai sair de lá e que gostaria de fazer uma mesa para a nova casa. Isso é de quebrar o coração. O que é uma mesa senão algo de dá suporte? Outras histórias mostraram que o que um pai ou uma mãe mais querem nessa vida é que seus filhos vivam bem e melhores que eles mesmos. O simples desejo de Fonny, que não poderá ser cumprido tão cedo, é só mais uma peça num sistema que leva a máxima sobre a honestidade, onde não basta só ser honesto. E que nesse caso, nem mesmo parece ajudar.
O sistema jurídico dos EUA tem algumas peculiaridades diferentes do nosso aqui no Brasil. Ao invés de ser uma questão de culpado ou inocente, os termos usados em inglês são guilty ou not guilty – culpado ou, traduzindo literalmente, não culpado, diferente de inocente. O que Jenkins mostra em Se a Rua Beale Falasse é sua crença que, naquele país, a tendência é que uma pessoa negra já carregue a balança para o lado da culpa, mesmo que as evidências mostrem a não-culpa. Em num sistema que te força a admitir culpa para facilitar as coisas, filmes assim necessários. Existem novas oportunidades que se renovam a cada vida, e essa história advoga que nelas depositamos nossas esperanças.
Se a Rua Beale Falasse concorre ao Oscar 2019 nas categorias Melhor Atriz Coadjuvante (Regina King), Melhor Roteiro Adaptado (Berry Jenkins) e Melhor Trilha Sonora Original (Nicholas Britell).
Elenco
KiKi Layne
Stephan James
Colman Domingo
Teyonah Parris
Michael Beach
Dave Franco
Diego Luna
Pedro Pascal
Ed Skrein
Brian Tyree Henry
Regina King
Direção
Barry Jenkins (Moonlight)
Roteiro
Barry Jenkins
Baseado em
Se a Rua Beale Falasse (James Baldwin)
Fotografia
James Laxton
Trilha Sonora
Nicholas Britell
Montagem
Joi McMillon
Nat Sanders
País
Estados Unidos
Distribuição
Annapurna Pictures
Duração
117 minutos
Data de estreia
7/fevereiro/2019
No bairro do Harlem nos anos 1970, uma jovem luta pela libertação do namorado acusado injustamente de estupro. Agora, ela corre contra o tempo porque não quer que o filho deles nasça enquanto o pai está atrás das grades.
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