A Mula | Crítica | The Mule, 2018
Percebendo que o tempo está passando, A Mula mostra um Clint Eastwood mais preocupado com seu espírito do que com grandes tramas.
Podemos acreditar que a vida é uma grande viagem e o diretor Clint Eastwood, ainda ativo aos 88 anos, acredita que está chegando a sua hora. Em A Mula, o octogenário fala sobre família, vida e morte sem se virar à exaltação de Deus e Pátria como em seus trabalhos anteriores. Sendo o personagem num road movie, ele visita velhos conceitos e se adapta às novidades que esse mundo apresentou desde em que ele está nele. O filme, que na primeira camada é uma trama policial, fala sobre sexualidade, mudanças de visão e sobre como a tecnologia mudou as coisas – principalmente para os mais velhos – com uma dose de comédia que deixa a mensagem mais agradável de ser apreciada. Por poder ser uma despedida, o diretor preferiu olhar para si mesmo ao invés de grandes tramas e conspirações.
Vagamente baseado num fato real, Earl Stone (Eastwood) é um personagem que estamos pouco acostumados na pele do ator/diretor. Sempre afável e com um sorriso no rosto, o cultivador de orquídeas parece ter a admiração – às vezes com uma pontada de inveja – dos companheiros de ramo. Quando o conhecemos no prólogo, fica estabelecido as duas vidas do personagem, onde a primeira é essa mencionada e a segunda vem do ponto de vista de sua família que ele renega pelo trabalho. Os motivos são justificados mais à frente da narrativa, mas essa introdução serve como resumo da nova vida que Earl encarna mais de uma década depois.
Experiente, Eastwood não precisa de falas para mostrar que as coisas pioraram. O pulo de doze anos para a história principal traz uma fotografia mais densa do que a inicial de Yves Bélanger e uma visita para uma neta crescida que, ainda segurada por uma visão romantizada do avô, não dá muita importância da relação dele com a filha e a ex-esposa, Mary (Wiest) – que não suportam estar no mesmo ambiente que Earl. Caído pela perda de casa, Earl é interceptado por um abutre que, percebendo a fragilidade do já idoso veterano de guerra, se aproveita do passado ilibado desse personagem cheio de defeitos na esfera particular, mas que poderia servir de ferramenta.
E é por causa dessa mesma experiência que fica difícil acreditar que Earl, mesmo na necessidade e na possibilidade de se tornar um Robin Hood moderno, não compreenda a encrenca que se meteu ao estacionar sua van num lugar guardado a metralhadora. A surpresa dele, já na terceira entrega, ao se descobrir como mula de um cartel de drogas, não deveria vir com tanta surpresa. Além disso, também incomoda que as mulheres de sua vida – ex-esposa, filha e neta – não tenham lugar na narrativa além de circundar o protagonista. Desde o casamento perdido até o funeral que acontece, as conversas entre elas são sempre sobre ele. Isso se reflete um pouco na cena da mansão de Laton (Garcia), onde o diretor fica dando closes em bundas femininas.
Porém, é interessante notarmos que, mesmo baseado numa história verdadeira, há algo de pessoal na trama – e é verdade também que todo cineasta, pelo menos em algum nível, faz isso em suas obras. Em certos momentos, existem cenas que são um tanto soltas na narrativa, mas que fazem sentido para o diretor. Porque, na prática, as cenas que Earl interage com motoqueiras lésbicas e ajudar uma família negra com problemas na estrada servem como um pedido de desculpas nas vezes em que ele próprio foi um cretino na vida. Quem assistiu tanto Sniper Americano (American Sniper, 2014) e 15h17: Trem Para Paris (The 15:17 to Paris, 2018) – e mesmo antes – sabe do viés político-ideológico do diretor. Isso não quer dizer que ele mudou de posição, mas essas cenas estão lá para mostrar que ele não pensa tão como antigamente.
Esses não são deslizes, mas são momentos que deixam a trama menos interessante, como se houvesse uma necessidade de fechar o filme com quase duas horas ao invés de 90 minutos. Por outro lado, o diretor mantém o filme interessante por meio da montagem – quando conhecemos seu antagonista, Colin Bates (Cooper), esse processo coloca os dois em uma luta ainda não realizada – e com cenas que fazem rir mesmo numa série de eventos que, mesmo não conhecendo o final, sabemos que não pode acabar bem. A maior qualidade do filme é que Eastwood, mesmo retratando alguém que faz um trabalho moralmente questionável, ainda nos faz gostar dele. E não é qualquer diretor que consegue fazer isso.
E como um pai que quer dar conselho aos filhos, Eastwood não perde a oportunidade. Ele reforça algo que já ouvi de outras pessoas mais velhas. Veja a curta conversa de Earl com Colin, por exemplo. Em resumo, ele não se coloca como mais inteligente – já que ele escapou daquele momento das garras da Narcóticos por pura sorte – mas só como mais experiente. Falando sobre como família é mais importante que trabalho, a trama nos lembra que isso pode ser verdade na maioria das vezes. É um tanto óbvio o que vem em seguida, mas é a maneira do diretor deixar o clima mais animado numa tragédia que se avizinha.
A jornada de autodescobrimento de Earl provavelmente não vai mudar a vida ou a opinião de quem assiste – todos sabemos a dificuldade disso. Porém, no que tange à construção do personagem, é interessante analisar como ele se sentiu útil depois de ser descartado até mesmo de sua casa. Sendo ele um homem que não conseguiu acompanhar o advento da tecnologia, como tantos outros idosos que conhecemos, fica a pergunta de como estamos tratando esses seres humanos tão experientes. Sim, o passado de Earl já não era louvável, e sabe se lá quantas chances a família lhe deu – outro elemento não aprofundado – mas o protagonista se torna mais signo que pessoa.
Há algum charme em A Mula, um filme daqueles que ficamos esperando a bomba explodir enquanto nos distraímos com a graça, se podemos chamar assim, de um idoso fazendo entregas para um cartel sem entrar nas consequências ruins disso. Vale muito para ver um Eastwood diferente em tela e sem uma arma nas mãos ou sendo grosseiro com outras pessoas – isso já tinha acontecido em Curvas da Vida (Trouble With the Curve, 2012, Robert Lorenz), mas não era um filme dele. Isso parece um reflexo dos novos tempos onde até mesmo um diretor conservador acredite que até mesmo ele pode mudar um pouco. Ou é só mais uma vez o cinema fazendo o que faz de melhor ao enganar o espectador.
Elenco
Clint Eastwood
Bradley Cooper
Laurence Fishburne
Michael Peña
Dianne Wiest
Andy García
Direção
Clint Eastwood (15h17: Trem Para Paris)
Roteiro
Nick Schenk
Baseado em
The Sinaloa Cartel’s 90-Year-Old Drug Mule (Sam Dolnick)
Fotografia
Yves Bélanger
Trilha Sonora
Arturo Sandoval
Montagem
Joel Cox
País
Estados Unidos
Distribuição
Warner Bros. Pictures
Duração
116 minutos
Data de estreia
14/fev/2019
Já idoso e com problemas financeiros, mas com um passado limpo com a lei, Earl Stone se turna a principal mula de um cartel mexicano e entra na mira das autoridades anti-drogas dos EUA.
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