A Forma da Água | Crítica | The Shape of Water, 2017
A Forma da Água tem temas já visitados por Guillermo Del Toro, mas o filme também é dotado de uma beleza própria e com toques de macabro.
Para quem já está acostumado com a filmografia de Del Toro, A Forma da Água tem algo de familiar tanto em seus personagens como na estrutura – o que não quer dizer que a nova produção seja dotada de uma beleza própria. A história de choque entre mundos, também um conto de fadas sombrio, é o transporte de um lugar de sonhos para a tela do cinema, que por natureza também tem algo de onírico. E mesmo sendo uma história fantástica, o diretor nos coloca no chão ao identificar gente capaz de amar a qualquer custo, amizade, preconceitos e monstros num cenário familiar, mas com uma suficiente dose de estranheza que nos fisga para dentro de um rio de emoções.
A escolha do cenário da guerra Fria e da corrida espacial foi uma interessante escolha para o contar da história. Simbolicamente, e claro que não é a primeira vez que isso ocorre, o período é marcado pelo medo – infundado ou não – de um ataque comunista, estrangeiros que viriam para mudar o estilo de vida, algo tratado desde Vampiros de Alma (Invasion of the Body Snatchers, Don Siegel). Mais simbólico ainda é o fato de algo que nos separa, a linguagem, não ser uma barreira para Elisa (Hawkins), o que a faz tanto uma ótima pessoa para ouvir e observar, ir além do que existe na superfície, seja com Giles (Jenkins), Zelda (Spencer), Strickland (Shannon) ou o Ser Anfíbio (Jones).
Lembrando também que a época do conto era terrível se você fosse gay ou negro – não que seja uma situação que tenha mudado exatamente – a vida desses três peixes fora d’água, e um dentro, é um contraste forte entre a vida comercial de manteiga de Strickland. O laboratório onde Elisa e Zelda trabalham e passam a maior parte do tempo é um ambiente frio, com tons de verde, amarelo e preto pouco convidativos, parecendo inspirados na cidade de Rapture. Os próprios apartamentos onde Elisa e Giles moram são problemáticos com seus barulhos e infiltrações, bem diferente da casa de Strickland, uma perfeição artificial, algo que tem paralelo com a mutilação que o militar passa ao enfrentar o Ser Anfíbio: uma aparente beleza, mas com uma podridão que se espalha.
Porém, Elisa vive como num sonho real. Seu lar, com todos os defeitos, fica no andar de cima de um cinema, um lugar próprio de sonhos. A sua vida é, como a maioria de nós, uma série de rotinas – tomar banho, se masturbar, comer, trabalhar, dormir – e a presença de alguém tão diferente da mesmice é tanto um desafio como algo digno de admiração. Dentro do seu silêncio, a protagonista descobre a alma de um ser que é definido por seus algozes como coisa ao invés de alguém. E essa característica de Elisa é sempre a mesma: ela não vê como Giles poderia ser isolado (no caso, sozinho no seu apartamento) apenas por ser gay, ou como ela e a colega de trabalho poderiam ser consideradas invisíveis, a ponto de serem deixadas com um grande segredo militar.
Se há algo que incomoda na narrativa não é a história, personagens, nem os exageros em certas situações, mas na narração off dada por Giles. Durante o filme, podemos dizer que alguns elementos já nos foram apresentados por Del Toro em O Labirinto do Fauno (El Laberinto del Fauno, 2006): o personagem mágico num cenário de guerra, os sacrifícios, o ver além do que os olhos permitem. Mas, se por um lado, o diretor nos coloca num cenário mais adulto por causa das interações sexuais, do outro temos que lidar com as explicações dadas pelo personagem. Pelo menos não é algo que acompanha do início ao fim, mas é claramente algo para audiências menos exigentes.
Passado esse pequeno entrave, nem mesmo as extrapolações da história incomodam – pode ser que a cena da dança onde o filme entra no sonho dentro do sonho num interlúdio musical seja demais para você, mas essa relação de exagero já havia sido pinçada em outros momentos e não desrespeita o universo estabelecido. É como uma cena anterior, onde Elisa transforma seu banheiro num aquário para o Ser Anfíbio: claro que a porta não aguentaria tanta pressão e que levariam muitas horas para água preencher aquele espaço, mas a partir do momento que Del Toro admitiu que esse é um conto de fadas, ainda que sombrio, podemos aceitar tais exageros pois eles se tratam mais de sentimento do que de realidade.
É verdade que há um certo incômodo inicial na relação entre Elise e o ser Anfíbio. Porém, se fizermos alguns paralelos, podemos pensar na possibilidade uma conclusão sexista. Seria menos estranho Ariel se apaixonar pelo Príncipe Eric (em A Pequena Sereia), ou Madison por Allen (em Splash: Uma Sereia em Minha Vida)? E isso não quer dizer que esse seja exatamente o motivo da estranheza. Mas são elementos que estão lá exatamente para fazer a nossa mente trabalhar com conflitos, onde a paixão de alguém por um ser gentil entra em oposição com os monstros de verdade, aqueles que cruzamos todos os dias das nossas vidas.
E essa sensação de estranheza e a de exagero não quer dizer que o filme seja inteiramente fantasioso. A figura de Strickland traz Elisa de volta à realidade, uma onde um homem em posição de poder acredita que ele tem o direito de tudo, impondo a ela um desejo contido. Ao conhecê-la, ele deseja uma mulher que seja muda, incapaz de reclamar de seus avanços, mas que acha que mesmo assim poderia fazê-la gritar. O personagem de Shannon lembra de alguma maneira do personagem que fez em Boardwalk Empire (2010-2014), o que mostra que o ator pode estar fadado a ser escalado para um tipo. Algo contraposto pela figura carismática do Dr Robert Hoffstetler (Stuhlbarg) e de seu pequeno segredo.
Explorando o humor no macabro – a fala sobre como os nerds usam o banheiro vinda de Zelda tem um que de fantástico – A Forma da Água passeia entre o poético e o real, deixando que o espectador tire suas conclusões. Essa relação com o filme tem muito a ver como vemos o mundo, se somos mais metódicos ou mais esperançosos, e não há uma maneira errada de encarar. A melhor maneira de passarmos pela experiência é realmente se deixar levar, entender que Del Toro quis contar uma história universal, a de não se deixar levar pelas aparências, de maneira criativa e marcante, algo que bem característico do horror pincelado na tela, mas que não a domina completamente.
A Forma da Água concorre ao Oscar 2018 nas categorias Melhor Filme (Guillermo del Toro e J. Miles Dale, Melhor Direção (Guillermo del Toro), Melhor Atriz (Sally Hawkins), Melhor Ator Coadjuvante (Richard Jenkins), Melhor Atriz Coadjuvante (Octavia Spencer), Melhor Roteiro Original (Guillermo del Toro e Vanessa Taylor), Melhor Trilha Sonora Original (Alexandre Desplat), Melhor Edição de Som (Nathan Robitaille e Nelson Ferreira), Melhor Mixagem de Som (Christian Cooke, Brad Zoern e Glen Gauthier), Melhor Design de Produção (Paul D. Austerberry, Jeff Melvin e Shane Vieau), Melhor Fotografia (Dan Laustsen), Melhor Figurino (Luis Sequeira) e Melhor Montagem (Sidney Wolinsky).
Elenco
Sally Hawkins
Michael Shannon
Richard Jenkins
Doug Jones
Michael Stuhlbarg
Octavia Spencer
Direção
Guillermo del Toro (A Colina Escarlate)
Roteiro
Guillermo del Toro
Vanessa Taylor
Argumento
Guillermo del Toro
Fotografia
Dan Laustsen
Trilha Sonora
Alexandre Desplat
Montagem
Sidney Wolinsky
País
Estados Unidos
Duração
123 minutos
Durante a Guerra Fria, Elisa, uma zeladora de um complexo militar secreto dos EUA, é exposta a um grande segredo dos militares do lugar: um solitário prisioneiro que, mesmo vindo de outro mundo, tem algum tipo de ligação com ela.
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