Além do Homem | Crítica | 2018
Além do Homem foge de clichês misturando lirismo com um Brasil pouco conhecido, mas sensual e envolvente.
O cinema marginal em geral, e aí se inclui o brasileiro, sempre está à sombra do hollywoodiano – e para se destacar, precisa sair do lugar-comum, caso de Além do Homem. Com um título que remete ao übermensch de Nietzsche, o protagonista de Biondani se reinventa e se redescobre numa jornada a sua terra natal, uma cheia de exageros, lirismo e com algo de mágico. Essa nova realidade é um signo tantas vezes já usado, a do autoconhecimento que serve para desestabilizar o personagem retratado, mas também é eficaz em fazer isso com a plateia. Cheio de símbolos e com passagens tênues entre realidade e sonho, essa é uma produção que quer nos cercar, como águas uma de cachoeira caindo por cima de nós.
Há absurdos e exageros críveis nessa aventura de Alberto (Guizé). Mas, diferente de outros personagens clássicos, ele é tirado do conforto do seu lar realista por necessidade ao invés de vontade própria. Chegando nessa cidade do norte do país, um lugar sem nome com um ar de magia, tudo parece estranho e incômodo. Ele, acostumado como bon vivant na França, esqueceu de como o povo brasileiro é mais expansivo, uma oposição à retração que vive. E a pergunta “quem sou eu” fica batendo em nossas mentes enquanto sentimos esse incômodo de Alberto, algo bem explicado na cena que o escritor encara um corredor escuro que nos parece saído de um filme de terror – mas quebrada pela estonteante aparição (quase fantasmagórica) de Bethânia (Nascimento).
Desde a fotografia – do francês Olivier Cocaul para França e do brasileiro Lula Carvalho para o Brasil – a mistura típica das terras tupiniquins recebe calorosamente Alberto, desde o taxista Tião (Boliveira) e seu táxi que é um misto de cores e crenças, passando por outros personagens muito receptivos, alguns loucos e outros enigmáticos – um mistério maior que o escritor veio para desvendar, tanto que o desparecimento de outro escritor fica em segundo plano. Realmente nos esquecemos dele enquanto Alberto recebe uma overdose de pessoas, cores e cheiros, uma experiência representada pelo contraste de cores da direção de arte e transição entre sono e realidade, tão natural que em muitos momentos simplesmente caímos nela – como costumam ser os nossos sonhos.
Essa loucura pega Alberto pelo colarinho – e a plateia, por consequência. Com tantas cenas mais puxadas para o lirismo e o simbolismo, é preciso prestar atenção. Entramos junto com o protagonista num Brasil que parou no tempo, mas podemos não perceber que, assim como Alberto, vivemos presos ao tempo: sem querer nos envolver, conhecer algo além da nossa zona de conforto, algo que nos desafie. Isso é tanto uma constatação do que é viver em grandes cidades quanto um tapa na soberba que podemos constatar em nós mesmos. Determinado momento o escritor grita “vocês não sabem de nada” – mas as pessoas daquele lugar sabem o que precisa saber: quando chega a chuva, que ele vai precisar de uma bicicleta ou de uma roupa de mulher.
E é curioso notarmos que existe toda uma aura feminina envolvendo Alberto, como quisesse devorá-lo, uma situação que lembra o nosso movimento artístico antropófago, sendo Tarsila do Amaral uma das mestras do estilo. Entre premonições e ações que envolvem água, seja da chuva ou da cachoeira da racha, esse signo de vida e renascimento acompanham a jornada desse nosso herói, onde para entrar num templo antropófago, com cabeças e pernas pendurados num cenário que mistura o fascinante com o horror, Alberto precisa abraçar o seu eu feminino para ter a autorização parar passar de uma porta onde apenas as mulheres poderiam.
Quando nos deparamos com algo fora do normal, que podemos chamar de loucura se assim quisermos, é natural buscarmos o conforto para voltar à uma realidade conhecida e mais confortável. Na tentativa de fuga daquele mundo que lhe está capturando, Alberto volta aos primeiros momentos da narrativa, falando francês consigo mesmo para afastar de si um momento que ainda não entende bem, num mundo até onde uma cabra aparece misturada com preto e branco. Esse é um resumo daquele Brasil que Alberto não quer, algo não selvagem, mas com algo de livre de amarras tradicionais, quente e sensual. Isso poderia ser, à princípio, visto com a pior das qualidades que vendemos para fora. Mas ao fugir do eixo Rio-São Paulo, tão comum nas produções, o diretor quebra esse paradigma.
Quando deixamos Além do Homem, é por meio de danças, sensualidade, misturas próprias do nosso povo, mas também com uma sensação de reencontro e placidez que nos deixam tanto perplexos quanto confortáveis. Entre as plasticidades e musicalidades, além de cenários tão nossos, essa é uma produção verdadeiramente cinematográfica. Desde a escolha da larga do aspecto de razão, sem se preocupar com o encaixe televisivo, essa é uma produção que olhamos como aquela obra de um tanto incômodo, mas de uma maneira boa. Ao se levantar da sessão, haverá mais dúvidas que certezas, numa experiência que mexe conosco de uma maneira ou outra, mas sem nos deixar indiferentes.
Elenco
Sergio Guizé
Débora Nascimento
Fabrício Boliveira
Flávia Garrafa
Marilyne Fontaine
Stéphan Wojtowicz
Giselle Motta
Maurício de Barros
Direção
Willy Biondani
Roteiro
Eliseo Altunaga
Daniel Tavares
Willy Biondani
Argumento
Willy Biondani
Fotografia
Lula Carvalho
Olivier Cocaul
Trilha Sonora
Egberto Gismonti
Montagem
Isabelle Rathery
Umberto Martins
País
Brasil
Distribuição
Imagem Filmes
Guizé é um escritor brasileiro radicado na França que tem que voltar ao seu país natal atrás de uma história… mas ele vai descobrir muito mais.
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