A Casa Que Jack Construiu | Crítica | The House That Jack Built, 2018
Entre o céu e o inferno existe a arte e a perversidade humana, assuntos abordados por Lars von Trier no seu perturbante conto A Casa Que Jack Construiu.
Gostando ou não de Lars von Trier, é impossível não sair de qualquer sessão de seus filmes sem querer discutir o que ele queria nos dizer. A Casa Que Jack Construiu é uma discussão sobre arte e a desgraça que a humanidade representa, pelo menos na visão do diretor. Os atos de sadismo do protagonista são cruéis ao extremo, atos de um personagem que se considera intocável por coincidências que passam desde o clima até o acidente genético de ter nascido homem. É um tanto difícil desassociar imagens da narrativa, e perguntamos a nos mesmos se tanta violência de maneira gráfica era necessária. Esse discurso nos acompanha durante toda a descida de Jack, e teremos mais de duas horas para pensar nisso.
Aprendemos por meio de histórias que lemos ou assistimos que os mentirosos gostam de falar, e isso acaba sendo o seu fim. Jack (Dillon) começa a se confessar na sua jornada no escuro enquanto acompanhado por Virgílio (Ganz), justificando cada um dos cinco atos atrozes – que chama de incidentes – para seu companheiro de viagem. É bem óbvio para onde Jack está indo nesse caminho sem luz, e nem é a intenção de von Trier esconder isso de nós, numa escolha metafísica pouco abordada em outros trabalhos. Mas sendo a arte algo perto do divino, parece justo que isso seja dessa maneira, principalmente qual é a sua percepção de arte, e se ela tem limites.
Mesmo que Jack seja um personagem fascinante do ponto de visto psicológico, maior que muitos assassinos em série dos filmes de terror clássicos, há no primeiro momento um grau de solidariedade com ele quando conhece sua primeira vítima (Thurman). Mesmo alguém sem o menor traço de sociopatia gostaria que a personagem calasse a boca depois de tantos insultos velados – mas é aí que o diretor nos pega no pulo. A pergunta é: ela era uma chata e um incômodo, mas merecia o destino que teve? Virgílio é esse contraponto, a nossa humanidade que clama por justiça, mas que ao mesmo tempo sabe que existem muitos que não se importam com nada além de si mesmos.
Já no seu caminho de matança iniciado e encontrar sua segunda vítima (Hogan), Jack está mais centrado e seu visual de óculos é tanto um signo do seu novo foco quanto um pulo temporal para mostrar que algum tempo passou. Ainda sem saber o que fazer, desajeitado e um péssimo mentiroso, ele tem que apelar para a ganância da vítima, e de novo von Trier nos pergunta se, por causa disso, ela merecia morrer. E assim como é a realidade, não existe um super-herói para parar Jack, ou qualquer instituição que possa fazer isso, seja na terra ou no céu: a casa da segunda mulher assassinada por Jack fica ao lado de uma igreja e depois ele ousa confrontar um policial mesmo com o corpo da vítima poucos metros deles.
Esses dois elementos, igreja e estado, são criticados por von Trier na trama, junto à sociedade, para mostrar que nesse nosso mundo torpe não existe nenhum tipo de refúgio. De que adiantou a primeira vítima ser vista junto de Jack ou a segunda morar ao lado de um templo e ser visitada por um policial? Essas forças na teoria são antagônicas a todos os atos do assassino, e ainda assim não foram capazes de pará-lo. Essa crítica é estendida também à mídia – que publica os atos de Jack no mesmo estilo do Assassino do Zodíaco – e repete-se em relação a lei e às pessoas em geral em outro dos chamados incidentes.
Nesse momento já percebemos como Jack não se conecta com a humanidade. Ele não chama suas vítimas pelo nome, com uma exceção, tratando as mulheres que resolveu citar a Virgílio apenas como casos num diário, e ao treinar máscaras do próprio rosto para parecer normal, nos encontramos num filme de terror. Assim como em Melancolia (Melancholia, 2011) fez um filme de ficção científica desastre fora dos padrões, esse também funciona da mesma maneira. Afinal, não é menos que desesperadora a situação da terceira vítima (Gråbøl) ao ver seus filhos sendo caçados por Jack, ou quando Jacqueline (Keough) – chamada de Simples por Jack – percebe a situação que se encontra. Se estivéssemos num filme de terror comum, com certeza o clichê das cenas delas tentando fugir teria música ou som estridente para assustar o espectador.
Mas o que acontece é que Trier quer causar o terror pelo nosso conhecimento do real. Da mesma maneira que acontece no segundo incidente, Jacqueline apela para um representante da lei e da ordem, um policial, que se mostra cego e surdo para seus apelos. Isso faz um paralelo com a cena seguinte, onde Jack começa a se justificar de maneira torpe seus atos, relembrando casos de violência contra mulheres e que ouvimos o fatídico “mas nem todo homem”: apesar de dessa vez von Trier não ter uma protagonista mulher, os atos de Jack direcionados à ela nos levam à um sentimento que deveria ser padrão de qualquer um, que é que elas devem ser sempre ouvidas.
Voltemos à arte. Para Virgílio a arte é inspirada pelo amor, mas Jack não concorda com essa visão. Ele comenta que existam aqueles que acreditam que os atos na ficção são uma vontade dormente que não podem ser feitos na sociedade – uma frase que é, na verdade, do diretor. Isso me lembra quando fiz uma pergunta a Darren Aronofsky sobre os que acham que o diretor seria egocêntrico demais, o que me remete a esse filme de von Trier. O cinema é visto como uma arte menor, que pode ser alterada em formatos e sons ou cortada para caber em televisões. Então, sim a nova produção do dinamarquês é ele falando dele mesmo, e é um dos jeitos de fazer arte.
Então, a violência expressa isso, mas não a violência por si só. É difícil sim separar as visões macabras que Jack e von Trier nos dão, mas essas funcionam como uma alegoria que só mesmo a arte consegue. Assim como para o protagonista não é limites para a maldade, não há para a arte. Às vezes ela incomoda, às vezes nos emociona, mas a tarefa dela é causar discussão. E sim, me incomoda terrivelmente os detalhes dos assassinatos e o fato de só mulheres serem mortas até próximo do fim do filme. Porém, se pudermos usar essa revolta e indignação para uma discussão, o resultado não será tão vazio.
Jack é misógino, não quer dizer que von Trier seja. O personagem começa a achar mais de si, que é intocável e numa sociedade machista e racista que criou seres como Hitler, Mussolini, Stalin e Mao-Tsé, o personagem se acha justificado, pleno e pior ainda, chancelado por ela. As ações desse assassino em série com TOC e uma mania de limpeza tem algo de um humor macabro que arranca alguns sorrisos da plateia, e aí que também devemos nos preocupar, pois é claro que existe algo sombrio dentro de nós, e essa personalidade que gosta de filmes slashers é destrinchada na trama de von Trier, usando a sua arte para criticar a própria audiência.
A discussão da perversidade humana e a descrença nela são bases de A Casa Que Jack Construiu. E como isso influencia quem somos e, por consequência, como a arte reage a isso. E na catábase nos encontramos na situação de dois tipos de ser humano: queremos justiça ou vingança? É certo que se o inferno existe, ele dá para aqueles que chegam lá a possibilidade de esperança, mas sem nunca a alcançar, que é a maior punição de todas. E de quem é a missão de julgar? Cada um dará a sua sentença. Mas ali, na tela do cinema, o filme faz a função máxima da arte: sem julgamentos, ela apenas apresenta a verdade do mundo, uma que nem sempre é bela como uma obra de DaVinci, mas perturbadora como uma tela de William Blake.
A Casa Que Jack Construiu faz parte da programação da 42ª Mostra Internacional de São Paulo.
Elenco
Matt Dillon
Bruno Ganz
Uma Thurman
Siobhan Fallon Hogan
Sofie Gråbøl
Riley Keough
Jeremy Davies
Direção
Lars von Trier (Ninfomaníaca)
Roteiro
Lars von Trier
Fotografia
Manuel Alberto Claro
Trilha Sonora
Víctor Reyes
Montagem
Jacob Secher Schulsinger
País
Dinamarca
Alemanha
França
Suécia
Distribuição
TrustNordisk
California Filmes (Brasil)
Duração
155 minutos
Data de estreia
01/nov/2018
Jack é um assassino em série e começa a contar algumas de suas histórias a Virgílio que o acompanha numa jornada a um lugar nada agradável.
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