Trama Fantasma | Crítica | Phantom Thread, 2017
Apesar do cenário, Trama Fantasma está longe de falar do mundo da moda – mas sim do que se esconde por debaixo das camadas humanas.
A primeira pergunta que passa na cabeça de quem conhece bem a filmografia de Paul Thomas Anderson seria por que o diretor resolveu fazer um filme sobre um costureiro. Pois assim como uma roupa fina tem várias camadas, elas também existem em Trama Fantasma. Entre a simples história de alguém obcecado pelo seu trabalho, existe o desejo, raiva e até toques de masoquismo para adentrar na complexidade humana, nuances captadas pela lente do diretor com um toque de suavidade e beleza. Isso sem deixar de lado como alguém pode ser frio o suficiente para usar as pessoas apenas como acessórios, descartando-as como peças de roupa que não servem mais.
Há uma frieza constante ao estarmos na presença de Reynolds (Day-Lewis), desde o clima londrino que acompanha o ateliê onde trabalha, a chegada à cidade que cresceu, e passando pelos elementos da cena. O costureiro, tão gélido quanto a xícara de pedra que usa para tomar chá, escolhe suas amantes pelo que consegue ver delas – e diferente de seus vestidos, ele não consegue alcançar o interior das pessoas. Já cansado da atual amante, dispensada pela irmã Cyrill (Manville) por estar engordando, ele é atraído pela inicialmente desajeitada Alma (Krieps) como uma fuga de uma vida que tem seu glamour e luxo, mas ainda assim um trabalho.
Alma é a primeira fuga de Reynolds, mas não demora para que ele comece a encaixar a jovem nos seus padrões. Literalmente, inclusive. Ao tirar suas medidas para ter certeza que ela seria perfeita – “ele gosta de um pouco de barriga”, diz Cyrill – Reynolds começa uma relação de fora para dentro. Não é algo errado, pois todos nós nos apaixonamos primeiro pela imagem que a pessoa projeta antes de nos apaixonarmos pelo que ela é de verdade, mas o protagonista sempre hesita, sempre tem medo de sair da zona de conforto. Seja não se sentando num lugar diferente no restaurante preferido ou se sentir desconfortável com a ausência da irmã, a única alegria de Reynolds é quando veste gente da chamada alta sociedade.
A chegada de Alma abala as estruturas da vida de Reynolds, e da irmã dele também. Alma não está disposta apenas esperar o amante – e o curioso que ela é, ao mesmo tempo, submissa a ele. Note a quantidade de “sim” que ela dirige à Reynolds por causa desse sonho que ela agora vive. Sem dúvidas, ela sente amor por ele, inclusive tomando as dores do costureiro que sofre ao ver como ele sofre quando uma personagem faz mal-uso de uma das suas criações, o que fecha com a primeira declaração romântica de Alma para Reynolds, esse ainda fechado para amor sincero.
Com uma personalidade difícil e distante, os confrontos são inevitáveis. Por causa dessas particularidades, onde Cyrill parece mais esposa do que irmã, Reynolds é avesso a novidades e, consequentemente, parado no tempo. Ele não percebe a evolução do afeto de Alma por ele, tanto que transforma o jantar que a jovem faz para ter alguns momentos à sós num cenário fúnebre, algo alcançado pela iluminação a velas da cena que jogam pouca luz ao ambiente – numa fotografia do próprio Anderson –, mudando o clima de romance para o da penumbra, reflexo do próprio espírito quebrado de Reynolds. Por isso, há uma medida desesperada de Alma.
A decisão de Alma, de certa maneira, é a ressureição de Reynolds. Ou pelo menos, ela força que ele reinicie seu sistema que já mostra sinais de estafa – não apenas a criatividade, mas a própria personalidade. O que é um paradoxo, pois é ao envenená-lo que Alma livra Reynolds de sua toxicidade (um machismo velado). Ao ser frágil e descer de seu pedestal por um momento, como ele se apresentou em outro momento do filme onde os dois trocaram alguns instantes de carinho, Alma consegue ver as camadas dele. É um amor, apesar de problemático, que só foi possível ao tirá-lo de um torpor causado pelo trabalho.
Há estudos indicando que a palavra trabalho vem do latim trepaliare, que pode ser traduzido também como infligir dor ou agonia. E fica difícil não concordar com isso, por mais que você trabalhe com o que ama – mesmo nessas situações, você precisa parar de vez em quando, mas pode acontecer de o mundo e seus prazos não permitirem. E Reynolds é um homem que nunca parou de criar, algo inconcebível por Cyrill que pergunta várias vezes quem estava doente por não acreditar que qualquer aflição poderia combalir o irmão. Eis outro paradoxo do filme: Alma inflige sofrimento para que Reynolds saia de um outro. Sim, trabalhar é sofrer.
É uma coisa interessante ver esse filme logo depois de Cinquenta Tons de Liberdade – pois podemos marcar paralelos entre os casais Christian/Anastasia e Reynolds/Alma. Apesar de estarem longe um do outro de como essas relações se dão, a escolha de Reynolds, aceitando a solução esporádica de Alma, é um tipo de submissão: ele está disposto a aceitar a vida à dois, portanto assumindo que ama a agora esposa, mesmo nos termos que ela propõe. Não por força, mas por vontade de própria. E sendo o amor se entregar completamente ao outro, não nos cabe julgar por nossos valores a decisão desse casal.
Então, podemos voltar ao questionamento inicial e descobrir o que Paul Thomas Anderson queria com Trama Fantasma. Ao colocar um costureiro como protagonista de sua história, o diretor transforma a investigação do espírito das pessoas em algo mais poético. É como se ele perguntasse o que existe no forro das pessoas: assim como belos vestidos, as pessoas podem parecer lindas por fora, mas o que importa mesmo é do que elas são feitas, dos detalhes e segredos que as mantém firmes ou que as desmanchem como uma costura malfeita. É uma abordagem original a um tema tão comum aos pensadores, amantes, filósofos, musicistas e, é claro, cineastas. Não a resposta definitiva, mas a de um dos melhores diretores da atualidade.
Trama Fantasma concorre ao Oscar 2018 nas categorias Melhor Filme (JoAnne Sellar, Paul Thomas Anderson, Megan Ellison e Daniel Lupi), Melhor Diretor (Paul Thomas Anderson), Melhor Ator (Daniel Day-Lewis), Melhor Atriz Coadjuvante (Lesley Manville), Melhor Canção Original (Jonny Greenwood) e Melhor Figurino (Mark Bridges).
Elenco
Daniel Day-Lewis
Vicky Krieps
Lesley Manville
Direção
Paul Thomas Anderson (Sangue Negro)
Roteiro
Paul Thomas Anderson
Trilha Sonora
Jonny Greenwood
Fotografia
Paul Thomas Anderson
Montagem
Dylan Tichenor
Distribuição
Universal Pictures
País
Estados Unidos
Duração
130 minutos
Durante a década de 1950, o estilista Reynolds Woodcock vestia diplomatas, duquesas e princesas. Ao conhecer Alma, seu mundo começa a mudar, mudando os paradigmas que antes norteavam sua vida.
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