O Animal Cordial | Crítica | 2018
- TIAGO
- 6 de agosto de 2018
- 8/10, cinema brasileiro, Críticas, Drama, Filmes, Policial, Terror, thriller
- 0
- 1972
Dentro de uma cena de crime, O Animal Cordial fala de um medo tão grande quanto ter uma arma apontada para nós: as relações de emprego.
Ao passear por alegorias dentro do gênero de crime, Gabriela Amaral traz em O Animal Cordial um conto que só quem passou horas trabalhando para alguém incompetente sabe. Contendo seus núcleos num espaço limitado, a diretora inflige uma tensão perceptível desde os primeiros momentos da trama, o elemento mais marcante e a maior qualidade de seu filme. Naquele pequeno espaço, a Amaral conta sem interrupções externas um retrato da realidade do trabalhador, em especial do brasileiro que hoje vive uma vida no limite, bem inseguro do dia seguinte e com um medo tão tátil quanto o de ter uma arma apontada para a cabeça.
Pode demorar um pouco para entender o que se passa no restaurante de Inácio (Benício) além da primeira impressão: apenas uma noite de trabalho que vai além do esperado por seus funcionários. Mas são as pequenas coisas que aos poucos mostram a realidade desses personagens, como uma conversa que não ouvimos do patrão com a esposa sugerindo que ela pegue um táxi em oposição a defesa de Djair (Santos) aos funcionários que não podem fazer horas extras por dependerem do transporte público. Então, Amaral pega esses abismos sociais e pelo bem de contar uma história interessante, mas também de cunho social, exacerba personagens e situações.
Prenunciado pela parede vinho do restaurante, a virada da história com uma tentativa frustrada de assalto mostra a verdadeira face de Inácio. E qualquer pessoa que já teve uma relação empregado x empregador reconhece aqueles arquétipos, talvez estando neles. Se Djair se coloca entre seu chefe e seus companheiros de cozinha, Sara (Paes) pode ser considerada a puxa-saco, por falta de um termo melhor, alguém que acredita que seu chefe está do seu lado e, consequentemente, acredita ser melhor que seus colegas de trabalho. A partir disso, a história ganha traços de violência, humilhação e sexo – o que é, no fim das contas, um conto sobre relações de poder.
O que poderia ser visto à princípio como um empreendedor protegendo o sonho da sua vida, logo vemos o que acontece quando alguém tem um pequeno poder nas mãos. De arma em punho, Inácio toma as vidas daquelas pessoas sem se importar com suas origens. Para ele, perder os clientes ou o respeito dos funcionários é o mesmo tipo de afronta, algo que ele, numa posição arrogante de ser melhor que o resto, não pode permitir. E ao errar e não assumir as responsabilidades, desde coisas simples passando até as mais graves, Inácio é a síntese daquele chefe, e não um líder, que age sem pensar. Afinal, apenas depois de ameaçar seus clientes e funcionários que ele diz para Sara que precisaria de um plano.
E é curioso notar como os cenários exagerados não nos tiram daquela história. Apesar das situações parecerem ridículas algumas vezes, é aí que elas são fixadas. Se formos levar literalmente em conta as ações de Inácio, começa a ficar óbvio que para ele não existe saída – a não ser uma bem fácil de identificar para quem é fã do gênero slasher que a diretora também brinca – mas não é essa a intenção de Amaral. Como qualquer boa ficção, a história apresentada apresenta uma questão reflexiva. No caso, o poder que um patrão exerce sobre seu funcionário. É bem simbólico quando, exemplificando isso, Djair exige ir embora de uma situação terrível, amarrado à uma cadeira, mas recebe uma resposta que podemos ter ouvido em outras situações: “eu sou o chefe aqui”.
Essas relações de poder contaminam Sara, que inclusive experimenta um gostinho dele ao empunhar a arma e mandar no seu chefe – provavelmente o sonho de mais comum de muitos empregados. Há uma frase creditada a Oscar Wilde que diz “Tudo nesse mundo é sobre sexo, com exceção do sexo. Sexo é sobre poder”. Pois a cena de transa dos dois é mais que uma transa: naquele momento, Sara está no comando, está em cima de seu chefe, numa posição superior. Naquele pacto de sangue dos dois, ela imagina ser uma igual, devaneando uma fantasia que lhe é tirada na primeira oportunidade. Além da beleza plástica da cena, a diretora quer nos colocar naquele lugar e perceber essas nuances – onde até a trilha sonora é interrompida, nos deixando só com o som desses animais.
Entre suor, sangue, sexo e violência – um prato cheio para fãs desse tipo de filme – existe algo de belo nesse cenário caótico, uma qualidade plástica que aponta como esses dois personagens que se juntam num pacto estão aos poucos deixando a humanidade de lado e se voltando para o mais bestial. Os momentos marcantes são o plano longo e sem cortes de uma conversa quase banal com o assaltante agonizante ao fundo com pouca profundidade de campo, desfocando o personagem como se ele não importasse, ou quando Inácio e Sara se vem no espelho rachado, onde a garçonete se vê menos deformada do modo que o patrão se enxerga, mostrando que ali ainda existe um resquício de alma.
Depois dessa experiência, fica até fácil definir a mensagem de Amaral em O Animal Cordial, mas que de tão óbvia, merece ser expressada: você não é o seu trabalho. Essa grande alegoria de uma relação trabalhista faz um paralelo com a realidade brasileira atual, um cenário que atinge 13 milhões de pessoas e os extremos que chegamos para não deixarmos de ter o que comer. É uma luta contra forças maiores que nós e até contra nós mesmos. A mistura de tragédia com terror parece sintetizar bem esse cenário que se não é seu tem a ver com pelo menos algum amigo, familiar ou conhecido.
Elenco
Murilo Benício
Luciana Paes
Ernani Moraes
Jiddu Pinheiro
Camila Morgado
Irandhir Santos
Humberto Carrão
Ariclenes Barroso
Thais Aguiar
Diego Avelino
Direção
Gabriela Amaral Almeida
Roteiro
Gabriela Amaral Almeida
Argumento
Gabriela Amaral Almeida
Luana Demange
Fotografia
Barbara Alvarez
Trilha Sonora
Rafael Cavalcanti
Montagem
Idê Lacreta
País
Brasil
Distribuição
RT Features
Duração
98 minutos
Inácio é dono de um restaurante paulistano que tem seu estabelecimento invadido por ladrões armados. Em face a esse perigo, o proprietário toma as rédeas da situação e mostra a sua verdadeira face enquanto tenta encontrar uma saída para a situação que foge de seu controle.
[críticas, comentários e voadoras no baço]
• email: contato@umtigrenocinema.com
• twitter: @tigrenocinema
• fan page facebook: http://www.facebook.com/umtigrenocinema
• grupo no facebook: https://www.facebook.com/groups/umtigrenocinema/
• Google Plus: https://www.google.com/+Umtigrenocinemacom
• Instagram: http://instagram/umtigrenocinema
• Assine a nossa newsletter!
Apoie o nosso trabalho!
Compartilhe!
- Clique para compartilhar no Facebook(abre em nova janela)
- Clique para compartilhar no Twitter(abre em nova janela)
- Clique para imprimir(abre em nova janela)
- Clique para compartilhar no WhatsApp(abre em nova janela)
- Clique para compartilhar no Telegram(abre em nova janela)
- Clique para compartilhar no Tumblr(abre em nova janela)
- Mais