Lembro Mais dos Corvos | Crítica | 2018
- TIAGO
- 21 de fevereiro de 2019
- 7/10, cinema brasileiro, Críticas, Documentário, Filmes
- 0
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Lembro Mais dos Corvos é importante por falar de assuntos de pouca visibilidade tanto na sociedade quanto no cinema ao dar voz e personalidade a uma mulher trans.
Podemos começar falando da importância de Lembro Mais dos Corvos no campo da visibilidade. Apesar de falar de entrevistar somente Julia, Vinagre usa do laço da amizade para tentar fazer com que a amiga se abra para a câmera, indo além de representar um papel, e dividir com a plateia uma visão de uma minoria e que não deveria ser ignorada por isso. Há também espaço para brincadeira entre os dois – a atriz/entrevistada tenta guiar o amigo, e às vezes não fica claro o que no documentário é verdade ou o que é improvisação de uma atriz – além do papo sério do que é ser uma mulher trans nesse país e como a nossa sociedade pode ser cruel com quem apenas busca ser o que entende ser.
Indaga pelo amigo/diretor, Julia Katharine quer saber do que falar. Contar tudo, mas o que seria esse tudo, podemos nos perguntar. E de que maneira também. A atriz prefere então fazer os paralelos que acha melhor, algo que é bem comum para qualquer ser humano. Então, ela que podemos chamar de cinéfila de carteirinha, usa da sua paixão pelo cinema para contar, ou interpretar, seu passado enquanto é filmada por Vinagre. E também por sua cinefilia, ela tenta mais de uma vez tomar as rédeas do filme. Primeiro querendo saber se o diretor queria uma comédia ou um drama. Incomodada pelo silêncio compreensível do diretor, Julia entra nas partes mais tristes da sua vida.
Isso serve tanto para quebrar o gelo quanto para dar uma esperança quando a narrativa seguir. Pensamos que o caso da relação que ela teve enquanto abusada por um tio-avô na infância – ele com 55 anos e ela apenas oito – é uma coisa tão horrível que não poderia piorar. Assim como um roteiro esperançoso, nos atemos naquela história na expectativa que essa pessoa que se descobriu mulher tenha tido a partir desse sofrimento uma vida melhor. Aos poucos, Julia vai buscando nas memórias momentos de felicidade, como as vezes que reassiste com a mãe Laços de Ternura (Terms of Endearment, 1983, James L. Brooks), mas mesmo esses momentos mais cálidos tem uma melancolia embutida.
Esse retrato íntimo, que só parece possível pela amizade entre os dois, não é do tipo talking head. Mesmo que o cenário não mude, é o suficiente para mostrar um pouco do universo de Julia. As conversas mostram uma não-linearidade, como qualquer papo com uma dose de informalidade faz, mas servem para montar a vida dela, como a TV e novelas moldaram a ideia da atriz enquanto jovem, e nos perguntamos se isso aconteceu com mais gente, e como eventos e apegos mexeram com a cabeça dela e como ela se tornou uma pessoa romântica, apesar dos problemas que passou.
É incrível que ainda tenhamos que lembrar que, para uma certa parcela da população, a vida é mais difícil que a média. Julia lembra dos julgamentos da família, do afastamento de amigos, da censura de outras pessoas trans por não ser uma trans “de verdade” (diga-se sem intervenções cirúrgicas) e quando olhamos para nós mesmos e se nos encontramos com problemas dessa esfera mediana – discussões no trabalho ou problemas financeiros, digamos – essa narrativa serve para lembrar também dos nossos privilégios, mesmo que as coisas estejam difíceis em um campo ou outro das nossas vidas.
Apesar de curto, o filme entra numa armadilha de não variar o cenário nessa noite insone – e comum – de Julia. Então, não é nada surpreendente entre uma divagação e outra da atriz nos encontrarmos quase dormindo, e aí que nos desprendemos um pouco daquela conexão que Vinagre quis manter conosco. O jovem diretor, mais acostumado com curtas-metragens, poderia ter usado sua experiência em contar histórias menores e encontrar um dinamismo que suplantasse essa monotonia de vermos o apartamento da amiga apenas ali entre um sofá e um cabideiro. Para Vinagre – e para qualquer um, é verdade – é um desafio passar dos 20/30 minutos para os 90 sem algum tipo de obstáculo no percurso.
Conscientemente ou não, Julia começa a trazer o filme para uma direção, uma que não necessariamente era a de Vinagre, e essa acaba se tornando a parte mais sincera da produção. Ao deixar esse momento dentro do filme, o diretor admite uma parcela de culpa quando Julia diz ao amigo que foi exotificada por ele – que quis que usasse um kimono, como se fosse uma gueixa – assim como é por uma sociedade curiosa – que tem no imaginário que pessoas trans se resumem a seres sexuais. Assim como usou o cinema como refúgio quando jovem, algo que a salvou da loucura e da depressão, ela diz acreditar que usou a câmera de um cineasta para uma leve dose de justiça.
Tão contraditória como qualquer um de nós – devassa e recatada, como ela mesma diz – a jornada de Julia contada em Lembro Mais dos Corvos não deixa claro quando o que estamos vendo é verdade e quando estamos assistindo uma atriz improvisando. Há um momento ou dois que a jovem quase se entrega, como uma admissão de culpa involuntária, mas logo ela volta para a personagem ou simplesmente corrige o pensamento. Talvez sem perceber, Julia entregou suas dúvidas e receios e lembra como a criação faz diferença na vida das pessoas. Ela pode não perceber que a busca pelo pai no Japão é algo além de procurar suas raízes, mas que no retrato de Vinagre, é outra peça para entender a amiga. E ela também tenta se entender quando, mais uma vez, toma o controle da narrativa e pede para mostrar o que ela vê todos os dias pela janela.
Elenco
Julia Katharine
Direção
Gustavo Vinagre
Roteiro
Julia Katharine
Gustavo Vinagre
Fotografia
Cris Lyra
Montagem
Rodrigo Carneiro
País
Brasil
Distribuição
Vitrine Filme
Duração
82 minutos
Data de estreia
21/fev/2019
A atriz Julia Katherine se abre para o amigo e diretor Gustavo Vinagre sobre o que é ser uma mulher trans no Brasil, violência, amor e cinema.
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