Roma | Crítica | Roma, 2018
Depois de nos levar ao espaço, Alfonso Cuarón leva suas câmeras para investigar a própria alma em Roma, um filme sobre a humanidade e em especial sobre a força da mulher.
O filme estreia na Netflix dia 14 de dezembro, mas você pode assistir no cinema num único dia em sessões limitadas e de graça. Acesse http://romanetflix.com.br e reserve seu ingresso.
Cuarón olhou para um triste futuro em 2006, para fora de si, para o espaço, mas num possível presente em 2013 e era apenas uma questão de tempo de olhar para si mesmo para reencontrar sua própria história. Então vem Roma, uma coleção de memórias do cineasta onde ele faz uma homenagem ao espírito humano, em especial à força das mulheres. Mesmo que o filme não tenha a grandiosidade de suas produções anteriores, nele o diretor mexicano mostrou que é um cineasta completo, tomando rédeas tanta da direção quanto outros departamentos técnicos, como a fotografia. Então, é a produção mais pessoal, com auto referências e lembranças de pessoas e eventos que podem não ter acontecido daquela maneira, mas que marcaram o suficiente para moldá-lo.
A opção pela fotografia preto-e-branco de Cuarón é mais pelo sentimento do que propor algo documental – não que uma coisa esteja desassociada da outra. Pois ele, já com seus 56 anos, tem lembranças em fotos e rolos de vídeos caseiros dessa maneira, uma limitação técnica que quis evocar em seu filme. Claro que a consequência disso, junto da ausência da trilha sonora, é prestarmos mais atenção no drama de Cleo (Aparico), a empregada que é cozinheira, babá e faxineira da família de Sofia (Tavira), que também vive seu próprio drama. A jovem de origem indígena – uma personagem inspirada em alguém da vida de Cuarón – acaba sendo uma segunda mãe para os filhos da patroa e dela também em determinados pontos do filme.
Por causa da narrativa lenta e a trama um tanto triste, alguém pode se encontrar perdido e pensando para que tanto tempo para contar uma história. Esse é a sina do imediatista, algo que Cuarón quer mudar. Com seus planos longos característicos, e com o movimento de câmera que praticamente se desloca de um lado para outro num apoio fixo como se fosse uma de segurança, Cuarón usa o tempo para mostrar detalhes da vida de Cleo e para gostarmos dela. Pessoas que conviveram anos a fio com babás sabem como essa relação funciona, e naquelas poucas mais de duas horas, o diretor espera mostrar o que é passar anos com alguém cuidando de você.
É importante comentar que o drama ali não é apenas de Cleo, apesar do peso que ela carrega. Primeiro físico – só vai embora para seu quarto quando todos se retiram em tarefas que nunca acabam – depois emocional ao ser abandonada grávida pelo namorado Fermín (Guerrero). Por seguir os passos dessa protagonista, sabemos pedaço por pedaço da situação de Sofia e seu esposo, pois Cleo está ocupada demais para problemas alheios. Então, aquela fração de informação num telefone, numa conversa com portas abertas criam um desenho que só é completamente percebido por nós quando é pela protagonista. Assim percebemos que a homenagem à força das mulheres não é apenas da empregada, mas também da empregadora que é abandonada, mesmo que seja de outra maneira.
Para reforçar uma necessidade de autoafirmação dos homens que rondam a vida das duas, Cuarón usa de alguns simbolismos. A cena onde o namorado de Cleo mostra seus dotes de artista marcial enquanto nu e o carro do esposo de Sofia que ocupa praticamente toda a largura da garagem são signos de uma virilidade que na cabeça deles, e de muitos homens, precisa ser mostrada e afirmada. Como o rei que chega no território, esses dois personagens fazem questão de marcar presença, por mais ridícula que a cena pareça. Mas agindo como covardes, usam qualquer desculpa para fugir da responsabilidade: um diz que vai ao banheiro e o outro diz que precisa fazer uma viagem. Realidades diferentes e um mau-caratismo similar.
E o diretor não esconde a fragilidade desses homens que não cuidaram daquelas mulheres que cuidaram dele – lembrem-se que pelo menos em parte, o filme é biográfico –, pessoas que encontram qualquer besteira para criar problemas ou fazer ameaças por se acharem como bichos acuados. O esposo de Sofia acha qualquer desculpa para sair de casa – “o lugar está uma bagunça”, “tem merda de cachorro na garagem” – e o namorado de Cleo ameaça mais de uma vez a jovem com seu poder físico. No entanto, Cuarón mostra como a protagonista é especial numa singela cena onde ela consegue fazer o que uma centena de homens não conseguem. Algo parecido acontece com Sofia, onde ela consegue, depois de muito esforço, se libertar pela verdade ao contar aos filhos o que o pai não quer admitir.
Passeando por lembranças emocionais e históricas – usando a mis-en-scene para nos situar naquele momento mexicano – Roma é uma história triste, mas relembrada com carinho por Cuarón e feito para sua verdadeira Cleo. É como uma justiça devida a uma pessoa que deu parte da vida em detrimento da própria, algo que ainda hoje podemos ver em vários lares, seja no Brasil, México ou EUA. Também fala sobre a verdade e como ela pode doer, adaptações que precisamos fazer na vida, coragem e sacrifícios. Mas além de tudo, é sobre o amor e como esse é o elemento que precisamos nos sustentar para sermos pessoas melhores. Em tempos de falta de empatia como o nosso, essa mensagem vem muito a calhar.
Roma foi o vencedor do Leão de Ouro no Festival de Veneza 2018 e é o indicado do México a uma vaga ao Oscar 2019 de Melhor Filme Estrangeiro.
Crítica publicada originalmente na cobertura da 42ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo.
Elenco
Yalitza Aparicio
Marina de Tavira
Marco Graf
Direção
Alfonso Cuarón (Gravidade)
Roteiro
Alfonso Cuarón
Fotografia
Alfonso Cuarón
Montagem
Alfonso Cuarón
Adam Gough
País
Estados Unidos
México
Distribuição
Netflix
Duração
135 minutes
Data de estreia
14/dez
Cuaron visita a própria vida nos anos 1970 ao contar, de maneira fantasiosa, como foi crescer no México e como a força das mulheres muitas vezes passa desapercebido pela sociedade.
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