O Farol | Crítica | The Lighthouse, 2019
Além de falar dos males do isolamento, O Farol é um conto do terror que é a masculinidade tóxica, mostrando que ela afeta também os homens.
Um dos grandes temas visitados e revisitados em filmes de suspense e terror é a síndrome da cabana, algo que Eggers usa para mostrar a decadência do homem (o gênero) em O Farol. Além do isolamento, típico dos filmes com essa abordagem, o filme é também uma contravenção, pois o Farol, em si, é um sinal de segurança, um porto seguro para quem vive no mar, pois sabem que ali, pelo menos, sabem que encontram terra firme. Ainda que o tema de pessoas que perdem sua humanidade ao enfrentarem algum obstáculo não é incomum, o diretor consegue nos confirmar junto dos protagonistas tanto por meio de questões técnicas como da própria narrativa, trazendo uma das melhores produções do ano.
Nossos heróis, nada heroicos claro, Ephraim Winslow (Pattinson) e Thomas Wake (Dafoe) não poderiam ser mais diferentes um do outro – e não falamos apenas da diferença de idade. Ambos começam muito calados, apenas com dez minutos de projeção temos uma oração/cântico de Thomas que encoraja o jovem Ephraim a beber com ele. Os dois são tão diferentes entre si que mesmo para sabermos seus nomes, Eggers leva outros trinta minutos. Isso é reforçado pela separação de elementos em cena, com a estrutura do quarto, e a projeção de sombras, por exemplo. Um elemento na fotografia de Jarin Blaschke que, em certos momentos, deixa o jovem mais poderoso que seu experiente companheiro.
Sem se perder no terror de sustos, a atmosfera do lugar é mais importante. Existe algo de mágico naquela luz, pelo menos aos olhos de Thomas que trata o farol pelo pronome “ela” (“she” no original), que faz pouco sentido em inglês, pois, normalmente, usa-se “it”. Isso indica possessão, e Thomas se sente dono da luz e isso se reflete na sua relação com Ephraim. Com o isolamento, os dois se tornam um estranho casal, cheios de acusações, sentimentos feridos – Thomas fica ofendidíssimo quando Ephraim critica negativamente sua comida – e uma tensão sexual não resolvida dentro desse lugar que é, no fim das contas, um grande falo.
Essa imersão é possível também pela entrega dos dois atores, contracenando apenas com si mesmo e com os desejos de suas personas. Nesse lugar terrível, como o som do Farol que é eventualmente assimilado por Ephraim, sonho toma lugar de realidade e Eggers é extremamente feliz em não deixar claro se as ações dele são realidades ou fantasiosas. A não ser, claro, as extremamente gráficas onde o diretor permite um ligeiro uso de efeitos especiais, mas que faz todo o sentido naquele universo. Essa mescla entre verdade e não-verdade nos coloca na pele do personagem, pois se ele não tem certeza das coisas, tampouco nós, ainda que sentados confortavelmente na cadeira do cinema.
Como outras histórias já fizeram, o isolamento que Ephraim procura é algo originário de uma culpa, uma história que é mostrada mais por sonhos do que palavras, apesar de termos a confirmação da história que antes vimos apenas pedaços. É uma experiência que nos deixa no pé da agonia, e a razão de aspecto 1:33 – aquela mais quadrada – nos aperta junto daqueles dois que hora se toleram, hora se odeiam. Apesar da fotografia preto e branco nos tirar ligeiramente da realidade que estamos acostumados, é exatamente por causa dela que podemos prestar mais atenção na escala de loucura que a produção toma e nos conduz.
Você se lembra de um dia que não passa, como aquele domingo que é sempre assim, ou ter passado por uma situação como um desemprego? De certa maneira, o farol que Ephraim e Thomas estão é um marasmo prolongado depois que as quatro semanas iniciais começam a se prolongar sem um tempo certo. É como as pessoas em situação de rua usam a bebida como escape para ver se o tempo passa mais rápido ou mais fácil, e isso é alcançado no filme pela montagem de Louise Ford que, apesar de linear, não permite que se faça uma contagem de tempo, com pulos que podem ser de algumas horas ou até de dias.
São elementos no filme que apontam uma tragédia bem humana, algo presente em toda a produção de Eggers. Apesar dos sonhos envolvendo sereias e tritões, os fantasmas que rondam aquela ilha são exemplos daqueles que perseguem nossos momentos de fuga. Ephraim diz que gostaria de um novo começo e, algumas vezes, é tudo que queremos. Mas, de maneira quase nietzschiana, Eggers nos lembra que somos construídos a partir dos nossos feitos, e quem nem na pedra mais distante do mundo podemos escapar desse monstro que podemos ou não alimentar dentro de nós – o que mostra o caráter de cada um, e até como reagimos diante das nossas escolhas.
Há um rompante, esperado, mas não menos importante na trama. Deixando as surpresas para que sejam vistas no cinema, é importante notar a tensão crescendo devagar, como uma piscina que vai se se enchendo gradualmente e, antes que possamos perceber, estamos tentando tocar com a ponta dos pés o fundo e não conseguimos. O confinamento de Ephraim e Thomas, que poderia ser comparado com o de um caixão, acaba sendo uma reflexão da própria existência e de quem nos faz pessoas. Algo com cara de Bella Tar, mas não menos importante por causa dessa comparação.
O próprio Eggers comentou que considera O Farol como a segunda parte de uma trilogia, em tom de brincadeira, onde A Bruxa (The Witch, 2015) era o lado feminino e agora no masculino. Isso é levado em conta ao extremo, pois esses dois homens querendo um sempre se impor ao outro é um retrato de uma masculinidade tóxica que vem já de bastante tempo, muito antes do século XIX onde a história se passa. Por isso o preto-e-branco e a razão de aspecto mais fechada, para dar essa sensação de história antiga, mas sem deixar de lado os motivos narrativos, como mencionado um pouco acima.
Nessa descida onde os personagens vão perdendo sua humanidade, O Farol é uma daquelas narrativas que trazem terror sem a pretensão de assustar ninguém. Ou seja, a intenção dos Eggers é deixar a plateia tensa, presa com aquelas duas figuras que, gradualmente, começam a se desligar da realidade por causa de um número de elementos, sejam externos – a natureza – e os internos – seus próprios fantasmas. Uma experiência cinematográfica dessas deve ser vista num templo apropriado, o cinema. Qualquer outro lugar te trará distrações, uma vontade de checar seu celular ou se levantar para comer alguma coisa. Assim como o diretor fez com seus personagens, é melhor nos isolarmos para entrar junto deles, no farol.
Elenco
Willem Dafoe
Robert Pattinson
Direção
Robert Eggers
Roteiro
Robert Eggers
Max Eggers
Fotografia
Jarin Blaschke
Trilha Sonora
Mark Korven
Montagem
Louise Ford
País
Canadá
Estados Unidos
Distribuição
A24
Vitrine Filmes (Brasil)
Duração
110 minutos
Data de estreia
02/jan/2020
O jovem Ephraim e o experiente Thomas estão no turno para cuidar do Farol. Ali, isolados e sem ter para onde fugir, eles começam a enfrentar seus piores demônios.
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