Nós | Crítica | Us, 2019
Em Nós há uma mistura importante de crítica social com ficção científica, deixando um recado que vai além de sermos nosso próprio inimigo.
Provavelmente, todos os perigos que você já passou tinham um alento que apontou Sun Tzu séculos atrás, o detalhe que o inimigo não te conhecia. Isso não acontece em Nós, uma trama de terror e suspense com um toque de ficção científica. Tirando o espectador do conforto, Peele nos leva para o terreno do estranho dentro do conhecido numa história digna dos melhores episódios de Além da Imaginação. Mas ao invés de lidar com o fim da nossa sociedade por uma invasão alienígena, zumbis ou alguma pandemia, aqui a crítica aparece com um rosto familiar, lembrando quem é o nosso maior inimigo.
Imagine como alguém poderia te ferir mais, não necessariamente de modo físico. Alguém assim, como dito em A Arte da Guerra teria que conhecer tanto você quanto a si mesmo. Partindo dessa ideia, mais uns toques de Lewis Carroll, é que a história da família de Adelaide (Nyong’o) corre, por labirintos e momentos insólitos que de tão tensos deixa pouco espaço para racionar. Desde o prólogo, podemos dizer que estamos num terror familiar onde a então pequena Adelaide se encontra pouco conectada com os pais e depois enfrentando os rostos conhecidos de si mesma e daqueles que ama. E quando bate o instinto de sobrevivência, temos pouco tempo para raciocinar sobre o que está acontecendo.
Isso se reflete na própria trama. A partir do momento que os invasores vermelhos aparecem no jardim de Adelaide e sua família, sobra pouco tempo para a razão. As respostas para a pergunta da presença dos doppelgängers têm que esperar porque sobreviver é mais importante. Podemos encontrar por aí pessoas com medo de alienígenas, animais ou qualquer outra coisa, mas o filme levanta uma questão filosófica de como podemos nos esconder de nós mesmos. E o título do filme parece ser mais que perfeito: quando Peele diz nós ele quer dizer todos nós. Apesar de que levantando em conta que o título original, Us, é o acrônimo de United States, percebemos para quem é o recado em especial.
O confronto ecoa em filmes de invasão alienígena ou de vírus que assolam a humanidade, mas Peele vai um passo além. Da mesma maneira que esses histórias, o diretor não deixa que o problema seja encarado só pela família principal, expandindo o universo de terror para toda a cidade que Adelaide e a família está, mesmo mostrando versatilidade de algumas piadas que parecem naturais por parte de Gabe (Duke) para quebrar esse clima. Porém, como diz a própria versão vermelha da protagonista “nós somos americanos”. E é muito importante que essa frase venha de uma personagem negra, mesmo sendo a antagonista. É um grito de uma excluída e que como toda a revolução, começa com uma guerra, mesmo que esse que poderíamos chamar de inimigo não é externo.
Em tempos de extremismos, Peele faz, assim como em Corra! (Get Out, 2017), que olhemos para dentro. Para o diretor, e também na visão de muitos, há uma tendência em culpar os de fora (alguém disse imigrantes?) os responsáveis por nossos próprios problemas. E o diretor usa de uma série de signos para desenvolver sua mensagem: os personagens vindos do subsolo, esquecidos, que usam tesouras para se livrar de suas amarras são os neo-escravos presos a um sistema que apenas os usou, uma questão socioeconômica abordada em seu filme anterior que aqui ganha um tom mais subjetivo, mas não menos político.
Lembrando de outro personagem famoso, os Acorrentados nos lembram de quando Martin Luther King perguntou num de seus discursos mais famosos se ele e todos os gêneros não sofriam ou sangravam o mesmo vermelho. Então, diferente de aliens ou zumbis, esses antagonistas sobem à superfície buscando o que lhes foi negado apenas por um capricho de seus criadores. Seria muito fácil, no conforto que nos encontramos – mesmo um conforto relativo – porque essas pessoas não pediriam ajuda. O sofrimento constante faz passar uma nuvem que distorce nosso pensando e raciocínio, o que pode explicar porque a maioria dos Acorrentados não fala
De vez em quando, sempre aparece uma discussão sobre escravidão, pelo menos em mesas brasileiras, como hoje não podemos ser culpados por esse fato desprezível do passado. Podemos dizer isso individualmente, mas não como sociedade. Os Acorrentados então surgem de uma vez e nos atacam de uma vez porque cansaram de esperar. O fundo de fantasia ou ficção científica está lá para ser o que ela sempre se serviu a fazer, ser uma crítica do nosso momento, e os toques de comédia também tem uma missão além de tirar a tensão, a de passar a mensagem mais fácil.
E há o terror, puro e simples. Felizmente e diferente de outras propostas do gênero – com exceção dos títulos da A24 – nesse filme, o terror afeta os dois lados. Diferente de demônios, vampiros ou seres do além, criamos empatia pelos Acorrentados. Isso se te sobrou um mínimo de alma levando em conta eventos recentes no nosso mundo. Ainda que o tema de sermos o nosso próprio inimigo não ser nada novo, é a maneira que Peele conduz a história que a torna tão relevante. Se o começo da década de 2010 for estudada no futuro, esse filme poderia fazer parte do currículo.
É claro que haverá aqueles que chiam, como sempre, agora serem confrontados. Mas Peele usa de várias sutilezas que é possível que possíveis detratores enxerguem o filme apenas como um filme de terror. Isso é mais uma parte da comédia de Peele, como quando Gabe reclama rapidamente de quem seria a ideia idiota de deixar a chave escondida do lado de fora – e que um negro nunca faria isso. Essas sátiras dão mais corpo ao filme, se tornando assim uma experiência completa em termos narrativos e de história, além de se equilibrar nesse multigêrenero que se encontrou.
Que esse é um mundo injusto, sabemos. Alguns em suas torres de marfim podem dizer que não querem mais ouvir falar disso. Até mesmo quem é esmagado pelo sistema pode estar cansado e por isso prefere ver algo leve e descompromissado. Por isso as novelas são tão populares no Brasil. De vez em quando vem uma obra como Nós para lembrar das mazelas da sociedade. Ao usar os próprios personagens como seus antagonistas, Peele nos lembra precisamos encarar esses problemas de frente e enfrenta-los de alguma maneira. Isso não quer dizer que o diretor esqueça do terror em nome de uma sátira política. Ele apenas mostra que é possível fazer as duas coisas sem abrir mão de nenhuma delas.
Elenco
Lupita Nyong’o
Winston Duke
Elisabeth Moss
Tim Heidecker
Direção
Jordan Peele (Corra!)
Roteiro
Jordan Peele
Fotografia
Mike Gioulakis
Trilha Sonora
Michael Abels
Montagem
Nicholas Monsour
País
Estados Unidos
Distribuição
Universal Pictures
Duração
116 minutos
Data de estreia
21/mar/2019
O que deveria ser um agradável fim de semana em família se torna um tormento quando uma família é confrontada por seus sósias que buscam retribuição de seus destinos impostos.
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