Maria Madalena | Crítica | Mary Magdalene, 2018
Maria Madalena dá destaque àquela que é a segunda mulher mais importante do cristianismo, mas que teve sua figura escondida por vários séculos.
Além do evidente clima de tensão, Um Lugar Silencioso traz uma discussão interessante sobre o que nos une como sociedade.
A nossa raça, homo sapiens sapiens, se desenvolveu muito por causa da linguagem. Seja ela qual for, seja lá o canto do mundo – e o exercício de tirar isso de nós é terror por si só. E aqui, cada passo dos personagens tem que ser meticulosamente pensado e os sentimentos mais básicos precisam ser reprimidos. E levando em conta que o grito é o elemento mais comum do terror, tirar isso também é um desafio no quesito filme: usar o silêncio como parte da narrativa para criar um ambiente que entra em oposição com uma suposta paz é o que faz a produção se destacar.
Para quem vive na cidade grande, com suas correrias e imensidão de gente, a premissa de uma quietude tem algo de paz. E é aqui, na subversão de o lugar silencioso não ser um lugar de quietude, que Krasinski nos coloca: uma anormalidade dentro de algo que deveria ser normal e até agradável. O que a ausência de fazer barulhos traz, coisas tão comuns, é uma limitação não só a família de Lee (Krasinski) e Evelyn (Blunt), mas a todos nós que estamos acompanhando a vida que eles agora se encontram. E o diretor faz isso por meio do signo da linha, que representam as regras desse novo universo: se você sair dela, seja a literal ou figurativamente, você morre.
À princípio, pode parecer um exagero que a sociedade esteja no colapso apresentado na história apenas com 89 dias – menos de um trimestre. Mas vale aqui um exercício de imaginação. Não é apenas a habilidade de falar, mas a questão da comunicação. O que nos separa, por exemplo, de outros primatas que compartilham 90% do nosso DNA se não a capacidade de nos entendermos plenamente, teoricamente, por meio de nossas expressões? Nos somos seres sociais, temos falhas e às vezes não aguentamos mais, como o solitário personagem que Lee e o filho Marcus (Jupe) encontram na floresta. E assim como a nossa raça evoluiu por estar em vantagens em relação aos nossos antecessores, essa família se adaptou aos ataques dos invasores porque ainda conseguem se comunicar entre si.
Em Regan (Simmonds – e uma curiosidade, a atriz é surda de verdade), aquele núcleo encontrou uma tábua de salvação. Ao se comunicarem pela linguagem de sinais, os personagens encontram uma vantagem na desvantagem, algo que vai cobrar seu preço. Toda trama é um constante conflito, subversões que tomam conta da narrativa e causam temor desde as coisas mais simples, como um brinquedo com pilhas e a tentativa de crianças, sendo crianças, desafiar os pais. A maior de todas as estranhezas é a chegada de uma nova vida. Grávida, Evelyn trará ao mundo um ser que, tradicionalmente, representa a renovação e a esperança. Mas aqui ganha tons opostos, pois o primeiro som dessa criança nesse novo mundo pode representar o fim.
É um desafio atrás do outro, e a data estimada do parto da nova criança é uma bomba-relógio. Num lugar onde tudo deve ser pensado e calculado, elemento que Krasinski traduz pelo movimento de câmera que acompanha a necessidade dos movimentos suaves e calmos dos personagens, sofremos como seres oniscientes, conhecendo de antemão detalhes que a família ignora. Coisas simples como um prego fora do lugar. Sabiamente, entregando uma peça para depois nos recompensar, o diretor nos causa pânico. Ele nos torna participantes da trama, momentos em que queremos gritar para Evelyn não pisar naquela tábua ou correr para que um dos filhos desligue o som do brinquedo para não atrair os monstros.
Uma pena que, talvez pela inexperiência, Krasinski apele tanto para elementos sonoros para uma trama que presa pelo silêncio. Ao abordar seu filme mais como terror do que suspense, o diretor usa e abusa da técnica dos scary jumps para fazer a plateia pular da cadeira, possivelmente por acreditar que o estado de tensão não era o suficiente para criar desconforto. É ao lado da atitude sexista de Lee, ao deixar Regan cuidando da mãe e da casa enquanto leva Marcus para pescar, a parte problemática do filme. Dois detalhes que mereciam ser abordados com mais atenção para deixar a área do comum. Mas, felizmente, são as únicas partes com apontamentos negativos.
Porém, é de admirar a importância que o filme dá às expressões faciais e à linguagem corporal dos personagens. Em contrapartida do tipo de susto mencionado no parágrafo anterior, o que temos na maioria dos momentos é uma produção remetendo à filmes mudos do início do cinema, algo que compreendemos pelas ações, movimentos e com ajuda de legendas (que tomam o lugar dos títulos do cinema do começo do século passado). Ou seja, percebe-se que Krasinski sabe o que está fazendo e que os momentos de tensão criados não foram por acidente, mas é de se estranhar as vezes em que ele escolheu o caminho mais fácil.
O diretor é capaz até de saber que precisa de momentos de pausa para respirarmos, e para isso ele usa o som de maneira eficaz, mostrando a importância do uso do elemento nos momentos certos. É assim quando Evelyn compartilha com Lee uma música, um momento doce que tenta mais uma vez normalizar um cenário anormal, ou quando as batidas do coração da criança que está perto de nascer enchem o ambiente. Sons que podem ser banais para nós que podemos ter esse luxo a qualquer momento, mas que para aqueles personagens representam o mundo ou o fim dele – um lugar que precisa ser constantemente reprimido com a tenacidade de não gritar quando é preciso ou por colocar panos em todo lugar para abafar sons, de novo de maneira simbólica ou não.
Seja por meio de simbolismos ou de maneira direta, a produção funciona principalmente para deixar a plateia tensa. Desde elementos mais subjetivos, como um carrinho de compras projetando sombras num brinquedo lembrando uma grade, até o vermelho que aparece na trama e demora a ir embora. Claro que durante a narrativa acabam passando pela nossa mente soluções para a situação o enfrentamento dos monstros. É que fica óbvia fraqueza desses seres encouraçados, o que leva a crer que mentes militares mundo afora não terem encontrado uma solução tão simples ou é uma grande conveniência de roteiro ou, é provável, o resultado de um ataque surpresa que dinamitou nossa reação.
Arrancar a capacidade de nos expressar é uma coisa monstruosa, por isso os seres de Um Lugar Silencioso, uma mistura de Lovecraft com os de HG Wells, são tão terríveis. Eles nos podam da nossa natureza, da nossa diferenciação expansiva que temos com nossos semelhantes – não apenas o medo, nem mesmo a capacidade de fala, algo que falta em Regan, mas a vontade de explodir, externar e compartilhar sentimentos, bons ou ruins. Existem outras produções que tratam do tema de maneira mais subjetiva, colocando outros tipos de monstros como esses vilões. Aqui, a abordagem mais direta de Krasinski traz uma narrativa mais simples, mas não menos interessante, do que nos faz ser o que somos.
Elenco
Emily Blunt
John Krasinski
Millicent Simmonds
Noah Jupe
Direção
John Krasinski
Roteiro
Bryan Woods
Scott Beck
John Krasinski
Argumento
Bryan Woods
Scott Beck
Fotografia
Charlotte Bruus Christensen
Trilha Sonora
Marco Beltrami
Montagem
Christopher Tellefsen
País
Estados Unidos
Duração
95 minutos
Num futuro próximo, a raça humana está à mercê de seres que nos caçam pelo mais baixos dos sons. Esse é o cenário que uma família tem que enfrentar enquanto esperam o nascimento de uma nova vida.
Para os que creem na figura divina do filho Deus vindo à Terra, Maria Madalena é um desafio, podendo até ser considerado uma obra blasfema. Para quem não tem a mesma crença, pode ser encarado como alegoria, onde uma personagem é eclipsada historicamente por homens simplesmente pelo fato de ser mulher. Hoje, longe daqueles tempos, podemos encontrar vários exemplos de como essa postura afeta nossas companheiras, amigas ou colegas. E o roteiro, feito por duas mulheres, lembra que mesmo a segunda personagem feminina mais importante do cristianismo sofre desse esquecimento, não é impossível que o mesmo aconteça hoje.
Essa Maria (Mara), vinda da região da Madalena, é alguém que traz paz no olhar e na sua presença. A pescadora trabalha tanto quanto seus irmãos, mas está sempre num patamar abaixo deles, com o peso de todas as tradições do judaísmo – que se repetem de maneira diferente em várias sociedades contemporâneas. E, de novo numa situação que podemos encontrar paralelos, ela é punida por ser diferente, num ritual de exorcismo que envolve um tipo de afogamento. Não existe uma documentação própria para a personagem, então abre-se um leque para a imaginação, como o encontro da protagonista com o próprio Jesus (Phoenix).
Esse Jesus é uma figura à parte, um homem menos divino e mais perturbado com o peso de ser o filho de Deus e de seu futuro que todos nós conhecemos. Essa é a visão de Madalena, um homem que se veste como seus seguidores, de maneira paupérrima, simples e sem a visão que nós estamos acostumados. Muito mais humano que em outras produções clássicas, a figura de Jesus é de um semblante triste, acentuado por uma fotografia cinzenta de Greig Fraser e a melancolia das notas de Jóhann Jóhannsson (em seu último trabalho) como se sempre estivesse frio – ainda que Madalena e os outros apóstolos estivessem na presença de um milagreiro real.
Ainda que irrite os mais fervorosos – Davis abre o filme chamando a época na Judeia de “Era Comum” ao invés de “Depois de Cristo” – a história se preocupa mais em ser uma alegoria de como mulheres são preteridas e esquecidas, por mais importante que sejam. E isso é um discurso progressista que por si só vai parar nas mesmas barreiras de discursos sexistas dos mais variados. E isso cai, paradoxalmente, na própria decisão do estúdio em escalar o diretor australiano para a cadeira. Pois seria um recado muito mais forte se uma mulher dirigisse o filme – não quer dizer que seria melhor, mas passaria uma mensagem.
E há outras diferenças que servem primeiro para destacar Maria Madalena, hoje considerada pela Igreja Católica a Apóstola dos Apóstolos ao invés de uma prostituta. A história permite alguns atalhos de fatos mais conhecidos que já foram abordados tantas vezes – a última ceia, o julgamento por Pilatos, a escolha por Barrábas, a traição de Judas (Rahim) ou a famosa negação de Pedro (Ejiofor). Isso dá à narrativa tanto dinamismo quanto contemplação. Pode ser contraditório, mas o que importa são as relações de Cristo com Madalena, algo tão marcante quanto um romance. De certa maneira é, pois ela ama incondicionalmente o mestre a ponto de deixar sua família, algo impensável na tradição judaica.
Maria Madalena é algo como um pedido de desculpas. Ou justiça sendo feita, se assim preferir. Ao aproximar-se da figura de Cristo mais como mensagem do que religião – lembrando que o filme, dentro da sua mitologia, confirma a ascendência divina do personagem – a história ganha traços humanos que nos aproximam tanto do Filho de Deus quanto de Madalena (a oposição entre o exorcismo e o batismo é algo marcante), tão negligenciada por quem decidiu o que em eventos como os concílios da igreja católica, sendo assim uma crítica à essa instituição. Apesar de faltar senso crítico próprio ao escolher não colocar uma mulher na direção.
Elenco
Rooney Mara
Joaquin Phoenix
Chiwetel Ejiofor
Tahar Rahim |
Direção
Garth Davis (Lion: Uma Jornada Para Casa)
Roteiro
Helen Edmundson
Philippa Goslett
Trilha Sonora
Hildur Guðnadóttir
Jóhann Jóhannsson
Fotografia
Greig Fraser
Montagem
Alexandre de Franceschi
Melanie Ann Oliver
País
Estados Unidos
Reino Unido
Austrália
Duração
120 minutos
Passado no ano 33 da Era Comum, a história joga uma nova luz à figura de Maria Madalena, resgatando a importância da segunda mulher mais importante do cristianismo, e de seus dias com o próprio Jesus.
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