Infiltrado na Klan | Crítica | BlacKkKlansman, 2018
O melhor filme de Spike Lee em anos, Infiltrado na Klan é um retrato antigo que, infelizmente, encontra um reflexo nos dias de hoje, mostrando que precisamos ser vigilantes.
É uma pena que filmes como Infiltrado na Klan existam: ou melhor que eles ainda precisem existir. A história do filme, que rendeu antes um livro, é baseada – com alguma dramaticidade para fins dramáticos – em eventos dos anos 1970, mas ainda parecerem assustadoramente atuais. E se você pergunta por que esse tema precisa ser revistado, Spike Lee responde com um filme dramático, mas satírico, azeitado com uma dose de humor para que a mensagem seja digerida de modo mais fácil, ainda que seja como aquele documentário que vai encontrar um terreno mais fértil em quem já comunga com os ideais do diretor, que tem seu melhor trabalho em anos.
O discurso de ódio contra toda a população negra já deveria ser um assunto claro – mesmo assim, é preciso que a arte, de vez em quando, lembre como a história pode ser cíclica. Se de um lado pessoas como Ron Stallworth (Washington) abriram o caminho para que os negros ocupassem lugares onde antes eram segregados por lei, ainda existem pessoas como Felix (Pääkkönen) e David Duke (Grace) que se esforçam como palavras ou ações para rebaixar populações inteiras por motivos idiotas como cor da pele ou o acidente geográfico de ter nascido em outra nação. E, mesmo sendo negro, Lee não faz o filme apenas para os seus – apesar de seu filme ser uma lembrança da história de lutas – mas para qualquer um com o mínimo de empatia.
Lee, por meio de seu filme, faz outra lembrança – a do verdadeiro inimigo interno. Ron, sendo um policial, entra em conflito moral com Patrice Dumas (Harrier) que, por causa de suas experiências com a força, não consegue confiar neles. O que o detetive propõe ao escolher essa profissão e se infiltrar na Ku Klux Klan é mudar as coisas por dentro: na força policial, reconstruir o sistema; no Klan, implodi-lo com a própria ignorância – e é por isso que a história faz comédia. Não porque seja uma situação engraçada, mas porque personagens como Felix e Walter Breachway (Eggold) são merecedores de ser apontados como idiotas, sem meias palavras.
A história também pode ser encaixada no gênero do buddy cop. Fazendo dupla com Ron, o detetive Flip Zimmerman (Driver) serve à história como um tipo de condutor para guiar uma população que não sofre com racismo – apesar do personagem ser ficcionalmente judeu – entender como é errado toda aquela história que racistas pregam. Mais uma vez fazendo o paralelo entra décadas, as conversas que Flip tem com os membros do klan, apesar dos 30 anos de diferença, são assustadoramente reais. E de tão atuais, Lee se permite uma brincadeira ou outra com a atual administração Trump, que é uma escada para refletirmos enquanto rimos.
E anos depois, um discurso que parecia fora da realidade – algo que Lee explicita nas conversas de Ron com Duke ao usar ângulos holandeses – enoja e choca qualquer pessoa que se declare verdadeiramente de bem. O diretor usa esse conflito mais vezes, e é feliz até quando Felix tem uma conversa aparentemente romântica com a esposa, mas num discurso tão recheado de ódio que as palavras dos dois ficam mais marcadas na nossa mente. E é revoltante que seja verdade, que existam pessoas que pensem assim de maneira segregacionista. Mesmo assim, esse é um filme que Lee se abre e acredita em alguma esperança – o que não quer dizer que alguma luta não seja necessária.
Mesmo com essa fatia de esperança, dias de luta ainda são necessários e por isso filmes como esse são. Visto muitas vezes como entretenimento puro – com balelas como filmes para desligar o cérebro ou filmes pipoca – o cinema usa, de vez em quando, esse quadro de arte menor para passar melhor mensagens importantes. Fora da questão das divisões, quando um filme consegue ser ao mesmo tempo relevante socialmente e com momentos que fixem sua mensagem na memória do espectador, o serviço está completo. Nessa produção, Lee escolhe a comédia, sem esquecer das história, tragédias e personagens reais que fizeram parte do movimento negro daquela década.
Algumas passagens são romantizadas em prol de uma narrativa cinematográfica, mas não quer dizer que sejam menos importantes para a mensagem. Tanto que Lee usa pedaços de O Nascimento de Uma Nação (The Birth of a Nation, 1915, D.W. Griffith) para fazer justiça. Usando o filme do século passado que ajudou a ressuscitar a KKK, Lee usou na própria narrativa, perto da conclusão, a montagem para que torçamos para que Ron chegue em tempo no seu destino e evitar uma tragédia – algo que Griffith fez no seu detestável filme, também por meio da montagem, pelos brancos racistas e torturadores que enfrentavam um inimigo que não existia. A diferença agora é marcante: é um herói negro que vem para salvar o dia.
Pode ser que um dos questionamentos de Patrice seja verdade, o de que não é possível mudar o sistema por dentro, pois os poderosos têm muito poder e mudar o status quo só seria possível por revoluções e revoltas. Isso faz de Lee não um apaziguador, mas um esperançoso. O filme não poupa críticas severas à violência policial e declara também que nem todo policial é corrupto, e nem que toda polícia é racista. A verdade é que aqui o diretor nos lembra que esse não é um fantasma, uma lenda ou algo do passado. É assunto que merece nossa total atenção e vigilância para que situações assim aconteçam cada vez menos.
É verdade que as doses de comédia em Infiltrado na Klan podem tirar o espectador de encarar o assunto de maneira séria. Porém, sendo o experiente diretor que é, Lee faz num plano com vários cortes no fim da projeção, com uma estética que lembra os filmes de blaxploitation, algo simbólico, para cair na realidade, uma que é jogada na nossa cara para nos tirar da zona de conforto que muitas vezes só o cinema consegue nos deixar. Essa quebra que Lee faz é para lembrar da verdade que nos cerca, como discursos podem começar pequenos e que pessoas impossíveis podem chegar ao poder, mesmo por vias democráticas. E, como disse Karl Popper, que nós, enquanto sociedade, não podemos tolerar o intolerante.
O filme estreia comercialmente em novembro, mas faz parte da programação da 42ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo.
Elenco
John David Washington
Adam Driver
Laura Harrier
Topher Grace
Jasper Pääkkönen
Ryan Eggold
Harry Belafonte
Direção
Spike Lee
Roteiro
Charlie Wachtel
David Rabinowitz
Kevin Willmott
Spike Lee
Baseado em
Infiltrado na Klan (Ron Stallworth)
Fotografia
Chayse Irvin
Trilha Sonora
Terence Blanchard
Montagem
Barry Alexander Brown
País
Estados Unidos
Lançamento
22/nov/2018
Distribuição
Focus Features
Duração
135 minutos
Nos anos 1970, um policial começa uma investigação sobre como funciona a Ku Klux Klan e descobrri que tipo de perigo a organização representa. Ele ganha a confiança de alguns membros importantes e está pronto para se infiltrar. Só tem um detalhe: ele é um policial negro.
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