Hereditário | Crítica | Hereditary, 2018
Existem bons terrores por aí, como é o caso de Hereditário – uma produção que é competente tano no horror quanto no gore.
Ainda há terror de verdade por aí – lampejos, é verdade, mas poucas produções do gênero são tão perturbadoras quanto Hereditário. Ao usar tanto do psicológico quanto do gore, a nova produção da abençoada A24 é o melhor desses dois mundos, ao mesmo tempo que não se rende aos grandes clichês do gênero, o que quer dizer sem scary jumps. E vai além disso. A história fala de medos do mal que podemos herdar, se há escapatória do destino – e se há destino, no fim das contas – e tem uma tensão tão forte que traz um desconforto quase tátil, um que se você esticar as mãos poderia sentir, o tipo de perturbação que vai te fazer olhar estranho para o canto escuro do seu quarto depois de assistir.
Durante toda a projeção, há um sentimento de inquietação. E como se alguma coisa muito estranha tomasse a plateia logo nos primeiros momentos, algo alcançado pela montagem do filme. Num movimento lento da câmera, a primeira cena é responsável por essa sensação, onde a casa em miniatura de Annie (Collete) se transforma no verdadeiro quarto de Peter (Wolff). Naquele momento, somos capturados por aquele mundo particular dela e de sua família, mas com certeza estamos nos aproximando da história a partir do ponto de vista dessa pessoa detalhista e lidando com a perda própria mãe – para entrarmos numa espiral que ascende do ponto de vista humano para o sobrenatural.
Um elogio bem comum feito ao filme é que a produção de Aster é O Exorcista (The Exorcist, 1973, William Friedkin) dessa geração. Isso vem do fato de haver uma grande áurea de dúvida que cobre o filme até sua conclusão. Comparações serão inevitáveis, mas sim, existem similaridades na estrutura. Quando vemos Charlie (Shapiro), podemos perceber algo estranho nela, elementos como seu figurino, a própria maquiagem e o olhar dela para o mundo. O que, a princípio, nos remete à protagonista do filme de Friedkin – inclusive há uma cena de tentativa de contatar o sobrenatural por meio de uma mesa – mas essas comparações acabam na inesperada virada, sutilmente prenunciada, onde o inferno começa a se aproximar.
O diretor constrói uma narrativa equilibrada, que se reflete tanto nos personagens quanto no seu estilo de filmar. Todos ali são bem racionais, mas é em Steve (Byrne) que Aster marca o símbolo do ceticismo para se opor à toda questão espiritual que se sugere durante a trama – mas sem afirma-la – sempre o deixando à volta de livros. Já com a câmera em mãos, o diretor usa diversas vezes uma perspectiva tradicional, apontando para centro, mostrando que aquela família preza pelo equilíbrio e a racionalidade. E a primeira vez que vemos a câmera se mover ligeiramente para mais um lado que o outro é quando acontece a já mencionada virada.
A história nos entrega uma variedade de símbolos, uns para explicar a história e outros para deixa-la misteriosa. Do lado do terror, símbolos e palavras que não conhecemos a origem, a visão que a jovem tem da falecida avó numa fogueira, ou como o vermelho abraça Annie na casa da árvore. Porém, é mais interessante caçar os sutis: uma narração natural que não conta com flashbacks, mas conta o passado por conversas ou pela arte de Annie; a questão do destino numa das aulas de Peter e os pequenos sacrilégios de Charlie, como arrancar a cabeça de um pombo morto. Junte isso com a opção de poucos cortes e temos um diretor que quer criar uma relação do seu cinema conosco, mas sem entregar tudo numa bandeja.
E quando um filme consegue nos envolver assim, não há a necessidade de surpresas para nos assustar. A música some e a produção deixa sons em volta na linha da naturalidade. Mas estamos tão tensos que um som baixíssimo, que já tinha usado como uma assinatura, faz qualquer um pular da cadeira. Esse som que perturba, ainda que muito familiar para nós e o personagem que começa a ouvi-lo na sua mente, lembra o tique-taque de um relógio, um som do prenúncio que o tempo está acabando e que o destino bate, ao invés de um monstro mascarado. A sensação de desespero já era grande, mas agora parece que preenche o ambiente.
E como o bom terror contemporâneo tem feito, essa produção lida também com outros fantasmas, esses bem reais. Mais que qualquer facão ou garra de lâminas, desespero e culpa são sentimentos mais difíceis de nos deixarem e só quem já passou por isso entende a tentativa quase anedótica de Anne de entrar em contato com os mortos. Por ser praticamente de uma hora para a outra, de descrente para crente, as situações têm algo de exagerado, beirando o improvável. Mas é ali, de novo, que Aster nos tira da zona que estávamos (talvez até rindo) para transformar Annie no maior dos terrores: aquele que vemos a pessoa que amamos, mas não a reconhecemos como tal.
Voltando à questão do simbolismo, um dos temas abordados é o que podemos herdar da nossa família. Podem ser bens materiais, assim como amor e também ódio. Existem generalizações, frases feitas sobre laços de sangue, como se a família fosse boa o tempo todo. Mas um olhar cuidadoso pode mostrar que nem sempre é assim. Talvez você fique chocado que seu tio ou seu sobrinho vai votar naquele candidato ou pode encontrar na sala da sua avó um livro de conjurações. Existem tantos segredos, tão próprios da humanidade, que podemos considerar normal cada um possa ter seus esqueletos no armário – ou no sótão, o caso desse filme. É uma subversão falar mal da família, mas a arte serve também para nos fazer refletir, inclusive num filme de terror.
Quando nos encontramos nos pés de Anne e sua família, entendemos melhor o drama desse novo terror. Ali, os personagens não estão cercados por pessoas desconhecidas, numa casa do lago isolada enquanto tiram férias. Ao contrário, é tudo comum, familiar no sentido mais estrito da palavra. Podemos perceber que os cenários são a casa da família, a escola, o caminho que fazem todos os dias, com exceção de uma nova personagem que desvia Anne. Esse assustador no familiar já foi alvo de outras produções por ser um arquétipo que funciona – e essa produção é mais uma prova disso.
Se não nos sentirmos seguros naquele lugar que chamamos de lar e com aquelas pessoas que temos carinho, não existe lugar lá fora que faça isso, o que transforma a vida num eterno horror. É como uma pessoa de foge de casa por causa de abusos e violência – não que seja o caso de Hereditário. Mas o medo que se aproxima a cada batida na porta de Peter, a inexorável presença de um mal assustador por ser tão próximo, uma que não cede à pedidos desesperados, pois é o próprio destino que está ali mostra algo que não podemos escapar. E poucas coisas são tão assustadoras como perceber que não há saída.
Elenco
Toni Collette
Alex Wolff
Milly Shapiro
Ann Dowd
Gabriel Byrne
Direção
Ari Aster
Roteiro
Ari Aster
Fotografia
Pawel Pogorzelski
Trilha Sonora
Colin Stetson
Montagem
Jennifer Lame
Lucian Johnston
País
Estados Unidos
Distribuição
A24
Duração
127 minutos
Depois da morte da mãe, Annie começa a perceber que a presença dela ainda está por ali. Num novo luto, a família começa a descobrir segredos que podem ter ligação com o sobrenatural.
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