Entre Nós | Crítica | 2014, Brasil
Entre Nós é um rico microcosmo sobre suspense, nostalgia, emoção e laços de amizade e o que pode mantê-los.
Com Caio Blat, Carolina Dieckmann, Maria Ribeiro, Paulo Vilhena, Julio Andrade, Martha Nowill e Lee Taylor. Roteirizado por Paulo Morelli. Dirigido por Paulo Morelli e Pedro Morelli.
Fugindo de uma visão maniqueísta ou parcial, Paulo e Pedro Morelli – pai e filho – criam um universo riquíssimo em Entre Nós. O filme é um misto de suspense e nostalgia que prende a atenção e emociona, e é dotado de uma doçura dos laços de amizade, e como eles podem ser quebrados. A qualidade do drama brasileiro atual se confirma nessa produção que, apesar de tão pessoal, tem um aura espontânea e verdadeira, mas sem deixar de lado os sentimentos do público.
Os amigos e escritores Felipe (Blat), Lucia (Dickman), Silvana (Ribeiro), Gus (Vilenha), Cazé (Andrade) e Drica (Nowill) se reúnem numa casa de campo para desenterrar uma cápsula do tempo feita dez anos antes com as cartas de cada um, inclusive do amigo morto nessa época, Rafa (Taylor). Suas vidas estão mudadas, e esse reencontro traz à tona velhas lembranças e um desconforto especial para pelo menos um deles.
O cenário proposto no filme traz algo de paz. Porém, num lugar isolado, parece que a consciência fala mais alto. A presença dos amigos, que deveria ser um momento de alegria, é um peso para Felipe. Logo na primeira cena, ele está naquele cenário imenso, mas isolado – sensação aumentada pela razão de aspecto – fumando um cigarro trêmulo, escondido atrás de grandes óculos pretos. E é hora de entender por quê.
O flashback de 1992 mostra um cenário diferente. Mais sorrisos, uma câmera na mão mais livre e uma fotografia cálida mostram jovialidade e esperança desses amigos numa confraria de autores com esperanças e sonhos. Imagens que, de certo modo, morrem com Rafa. Toda essa mudança é representada poeticamente durante o reencontro, na fotografia pálida, na câmera fixa, na seriedade do figurino de alguns dos amigos e principalmente na árvore que antes cuidava, por assim dizer, da pedra que marca o lugar da cápsula do tempo, e que em 2002 não está mais lá.
Há uma disparidade latente entre esses amigos, com problemas não resolvidos, e os dois Morelli colocam isso no meio de perguntas não respondidas. Por exemplo, por Lucia ser a esposa de Felipe, mas há dez anos ter sido namorada de Gus. Isso pode levantar questionamentos, como se seria ela interesseira e ficou com Felipe por causa de seu sucesso literário. Ainda assim, todos se gostam muito. Principalmente as moças, que dão a liberdade de xingarem umas às outras sem que isso seja um problema.
Mas existe a tensão que é apresentada no começo do filme. Digno de outros mestres do suspense, a trama vai se fechando no culpado mais e mais. Agatha Christie dizia por meio de seu personagem Hercule Poirot que basta você deixar que um mentiroso fale e ele eventualmente se entregará.
Por ser um filme de suspense, é necessário entrar um pouco na trama para fazer a análise. O mistério já é entregue de bandeja no trailer, infelizmente. Mas no filme não demora para entender que Felipe roubou o livro ainda recém-finalizado de Rafa depois do acidente de carro que os dois sofreram. Ele ganha fama e dinheiro, mas é perseguido pelo que o amigo pode ou não ter escrito na cápsula do tempo. Isso se torna uma paranoia, e ele se entrega só falando um pouco aqui e ali. Interessante que a primeira a desconfiar, inconscientemente, é Silvana, numa cena com um plano longo e com um sino ao fundo, como se ela despertasse pela primeira vez. Então, Felipe acha que todo comentário é sobre ou contra ele, o que não deixa de ser parecido com a paranoia do protagonista de O Coração Revelador (Edgar Alan Poe): Rafa é um fantasma que atormenta Felipe.
Seguro na história que contam, os Morelli não julgam e abrem espaço para os outros personagens da trama serem tridimensionais com seus anseios de dúvidas. Felipe não é um vilão superficial, por isso existe mais uma cena de flashback, desta vez no fim do segundo ato, mostrando que ele tentou salvar a vida do amigo, e o rascunho do livro veio junto por consequência. Ao montar e editar o rascunho em forma de livro além de ideias num papel, Felipe acredita com fervor ter direitos à obra, considerando-a parte dele, pois incentivava o amigo a escrever e melhorar. A cena sabiamente foi colocada não no começo porque o espectador – representado por Lucia dentro do filme – já sabe que Felipe vive uma mentira e possivelmente se apressou a julgá-lo. A história mostra mais um aspecto de cinza.
Os diretores não se esquecem dos outros personagens do núcleo, cada um com suas angústias. Drica querendo ser mãe, enquanto Cazé não; a visão autodepreciativa de Gus, que se vê sempre como alguém que não faz nada certo; Lucia, que por causa da farsa de Felipe cai numa espiral de dúvidas; e Silvana não parece se encaixar mais no grupo, principalmente por ter perdido seu par, por assim dizer.
Além de tudo isso, o filme é uma produção original num mar de continuações, remakes e adaptações e impecável tecnicamente. A fotografia de Gustavo Hadba tem poucas, mas excelentes nuances, e consegue fotografar lindamente cenas noturnas, visto principalmente quando Felipe se entrega e, um pouco mais a frente, quando Gus e Lucia se entregam. E o largo aspect ratio 2.39:1 fogem do estigma que a produção nacional tem com a TV, tão comum nas comédias do Brasil.
Entre Nós é um filme cheio de poesia. Os Morelli gostam de trabalhar com metáforas, e é divertido analisa-las. Além do já citado sino, há uma cena de jantar que antecede a retirada da pedra, cheia de closes fechados e tensos. E a belíssima cena em que Drica e Gus discutem sobre depressão enquanto vão descendo um barranco. Na conclusão, os dois estão mais leves e se ajudam a subir de volta. A mais forte, ainda que menos clara, é a do besouro, que aparece três vezes durante a projeção. Em entrevistas, Paulo Morelli já foi perguntado mais de uma vez o que esse símbolo quer dizer, e ele sempre devolve a pergunta, o que não deixa de ser a função da crítica. Tanto Felipe como o besouro de costas estão presos na sua situação, e não conseguem sair delas sozinhos. É necessário um agente externo, um empurrão para que isso aconteça. Mas depois de tanto passar, tanto saber, como voltar para a sua vida normal? De novo, pai e filho na direção não dão as respostas mastigadas, mas deixa-nos imaginar dentro desse doce e triste universo. Seja lá como for, uma coisa é certa: no fim, ninguém sai incólume. Nem os amigos, nem nós, o público.
Veja abaixo o trailer de Entre Nós
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