A Vida Invisível | Crítica | 2019
Falando da invisibilidade que as mulheres passaram por gerações, A Vida Invisível é uma tardia e necessária homenagem a todas elas.
Passado numa década especialmente importante para as mulheres brasileiras, A Vida Invisível é uma homenagem a todas elas. Fugindo do estereótipo atual do que se acostumou a chamar de mulher forte, principalmente nos filmes de ação, o filme de Aïnouz mostra uma virada de pessoas que foram deixadas invisíveis seja por Deus, pela Família ou pela Pátria. Indo além do belo estético, a produção nacional não se prende à clichês ou muletas narrativas para contar sua história em praticamente toda a duração do filme, ainda que, ao final, tenda ao melodrama. É verdade que uma história assim merecia ter uma mulher na direção, mas, ainda assim, a essência capturada é dotada de uma sensibilidade rara e desafiadora.
Como é comum, Eurídice (Duarte) e Guida (Stockler) são irmãs e confidentes e, sendo mulheres, se apoiam para tentar escapar das garras de uma sociedade machista e patriarcal vinda, primeiramente, do pai delas. Guida, mais corajosa, resolve seguir um impulso e isso inicia uma reação em cadeia que reforça exatamente essa parte dominante da sociedade comentada no começo do parágrafo. Usando a técnica da montagem com maestria, podemos perceber como a falta da irmã afetou a vida de Eurídice a partir dessa primeira peça de dominó derrubada, pois, depois da descoberta, a cena seguinte já é o casamento da personagem que ficou no Brasil.
Isso é importante, pois mostra a vida sem graça depois da partida de Guida, através de imagens e não de palavras, um vácuo tomando esse espaço de tempo. O casamento com Antenor (Duvivier) é, por bem ou por um mal, uma mudança para Eurídice – por parte dela, é uma certa esperança que a vida continue, pois, ainda mantém o sonho de ser uma pianista conhecida. Mas dentro dessa família sem diálogo depois da fuga da irmã, a jovem noiva precisa de um curso intensivo de vida marital dada por uma amiga dentro de um banheiro, um cenário que vai se repetir durante o filme – há pelo menos três diálogos marcantes nesse espaço.
Continuando essa história de submissão da mulher, Antenor chega a drogar Eurídice para ter relações com ela – um estupro. Já Guida, enganada por um homem que lhe prometeu mundos, mas a deixou apenas com uma gravidez, tem que encarar o pai que, tendo a história que tem, deixa a filha apenas com um maço de notas e se guarda na questão da honra para deserdá-la. Momento a momento, a história mostra como essa virilidade agressiva, e não necessariamente física, traz dor e sofrimento. Por exemplo, ainda que Antenor não seja classificado um cretino idiota, a não ser pela surpresa no fim do filme, ele faz parte dessa engrenagem mesmo sem perceber.
Isso fica bem óbvio quando Eurídice consegue se aprovada para uma bolsa de estudos na Europa. Ela chega em casa feliz, poderosa, querendo dominar o marido sexualmente inclusive, mas ele reage como qualquer homem de ego frágil: ao invés de dar suporte à esposa, mesmo já tendo cuidado dele e da filha há anos, ele começa a se revoltar com pequenas indiretas, com um medo de ser rebaixado ao papel que Eurídice sempre fez em casa, a de dona do lar. A vida da personagem já vinha sendo apagada gradualmente, até mesmo o seu piano é colocado num lugar apertado da nova casa, sem o destaque que precisava para a personagem poder viver.
Enquanto isso, Guida tinha que também a se sujeitar a esse mundo dominado por homens. Há uma frase bem marcante que reflete isso, depois do parto do filho da personagem. Quando Guida volta para seu canto, um cortiço que tem que dividir com estranhos, ela ouve de uma vizinha que foi muita sorte da criança ter nascido menino. Afinal, que homem seria expulso de casa se engravida-se uma jovem? O bebê é, à princípio, um peso e uma lembrança de seu infortúnio. Mas nele também há uma esperança, a de que com uma amiga, o garoto poderia crescer fora dessas correntes se criado por duas mulheres.
A falta de respeito permeia toda a trama. Eurídice não é respeitada pelo marido, que em determinado força uma relação em cima do piano, e depois pelo médico que conta para Antenor de sua gravidez – dois homens com poderes, um por matrimônio e outro de jaleco, invadem seu espaço particular. Isso não quer dizer que Eurídice não ame sua filha, mas ela apenas queria ter o direito de escolha. E considerando que na década de 1950, onde o filme é ambientado, temos a segunda onda da liberação feminina como a consolidação do direito ao voto e, alguns anos depois, a criação da pílula anticoncepcional, vemos na produção uma lembrança à tanto que foi negado às mulheres e por tanto tempo.
O pai de Eurídice nega inclusive o direito da filha em saber o paradeiro da irmã, defendendo ainda esse conceito abstrato que chamamos de honra. A personagem é inclusive alertada por Zélia (Manoella) dos problemas que ela poderia enfrentar se fosse abortar: “é pecado” (religião), “é crime” (estado), todos querendo se meter em escolhas que deveriam ser de foro íntimo. A amiga, que já havia dado as dicas do casamento, cede e se solidariza com o que ela passa. Mas, sem que lhe deem descanso, vem a figura do médico e atrapalha seus planos e sonhos, também impedidos por Antenor.
Apesar dessa visão bem particular do feminino, há espaço para dramas universais – o que não quer dizer que a luta feminista seja interesse só de mulheres. Há, em algumas conversas, ecos na vida de qualquer pessoa que depende de sua própria força para viver – “pobre não tem tempo de endoidar” e “você tem que agradecer por ter trabalho” são alguns dos momentos que marcam qualquer um que precisa se sujeitar a muita coisa para poder trazer sustento para casa. E sim, tudo fica mais difícil ainda por ser mulher, e se hoje ainda é ruim, uma produção dessas lembra como já foi pior.
Outros temas são envolvidos em A Vida Invisível como a diferença entre sexo e amor, mentiras que destroem sonhos – notem o simbolismo quando a agora idosa Eurídice (Montenegro) se torna visível depois de décadas desfocada – e todos eles montam uma obra pertinente e crítica aos nossos tempos onde uma onda conservadora parece querer varrer tantas conquistas. Apesar do melodrama que a parte final carrega, o restante do filme é tão importante na mensagem, ao mesmo tão impactante, que merece que isso seja relevado. O que não significa que Aïnouz mostre como resolver os problemas da sociedade, mas esse filme, sem dúvidas, trará discussões pertinentes sobre a época que vivemos.
Elenco
Carol Duarte
Julia Stockler
Gregório Duvivier
Fernanda Montenegro
Maria Manoella
Direção
Karim Aïnouz
Roteiro
Murilo Hauser
Inés Bortagaray
Karim Aïnouz
Baseado em
“A Vida Invisível de Eurídice Gusmão” (Martha Batalha)
Fotografia
Hélène Louvart
Trilha Sonora
Benedikt Schiefer
Montagem
Heike Parplies
País
Brasil
Distribuição
Vitrine Filmes
Duração
139 minutos
Data de estreia
21/nov/2019
As irmãs Eurídice e Guida são inesperáveis, mas com seus próprios sonhos. Porém, elas são afastadas forçadamente pelo pai que não aceita uma decisão da filha mais velha. Enquanto procuram uma pela outra, ambas tem que lidar com uma sociedade machista e patriarcal que querem enterrar seus desejos.
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