A Caça | Crítica | Jagten, 2013, Dinamarca
A Caça mostra com uma mentira pode acabar com a vida de alguém, mesmo que essa não fosse a intenção.
Com Mads Mikkelsen, Susse Wold, Thomas Bo Larsen, Lars Ranthe, Anne Louise Hassing, Bjarne Henriksen, Annika Wedderkopp, Lasse Fogelstrøm e Alexandra Rapaport. Roteirizado por Tobias Lindholm e Thomas Vinterberg. Dirigido por Thomas Vinterberg.
Ficamos acostumados com denúncias, e é normal qualquer portal ou jornal impresso estampar os dizeres que alguma pessoa foi acusada de cometer um crime. Pode ser apenas o começo da investigação, mas a simples citação é passível de marcar para sempre. Seja verdade ou não, essa é basicamente a proposta de “A Caça”. A discussão envolve verdades e mentiras, como a vida pode virar vertiginosamente por causa de algumas palavras, e sobre um estigma que não será apagado facilmente, se é que um dia será.
Em alguma pequena vila na Dinamarca, Lukas (Mikkelsen) é professor de uma escola infantil. As crianças gostam dele, tentam surpreendê-lo com brincadeiras, pulando em montes, tentando derrubá-lo para mostrar que são fortes. O carinho que os pequenos tem é bem tocante, e Lukas gosta de trabalhar com eles. Não é uma profissão vista com bons olhos pela ex-esposa, que chega a dizer que o filho não o respeita por causa disso. Ele tem bons amigos, que compartilham seu gosto pela caça, e começa a se envolver com Nadja (Rapaport), que também se interessa pelo professor. Por várias qualidades, é compreensível que a pequena Klara (Wedderkopp), filha de um casal de amigos de Lukas, crie uma paixão infantil pelo professor. A menina chama a atenção pelos problemas que passa: um transtorno obsessivo compulsivo e brigas entre os pais. Ela se sente rejeitada por Lukas quando a repreende por uma fato que aconteceu na escola, e conta uma mentira, querendo se vingar do professor. Alguma coisa que é pequena apenas na mente dela. Apesar de ter uma imaginação fértil, como a diretora aponta mais de uma vez, isso não parece ser motivo para duvidar de uma criança que, na visão equivocada de muitos, nunca mentiria.
Lukas é um personagem metódico e calmo. Principalmente quando caça, esperando que a presa venha à ele, e não ao contrário. E Vinterberg cria com grande competência nas tomadas a serenidade do protagonista. É tudo muito tranquilo até quando a acusação toma corpo, e a tensão sobre radicalmente, sem previsão de passar. E isso que é fantástico na trama: a história de Lukas fica tão manchada que parece não existir saída, e assim ele se torna a caça propriamente dita.
Quando a semente da mentira é plantada, Lukas já é apontado como culpado, mesmo sem provas. Existe também uma jogada preconceituosa contra o professor. Notem que ele é o único homem empregado na escola. Com exceção de Nadja, todas as outras funcionárias e a diretora se unem contra ele que, por ser homem, e pela noção errada de que uma criança não seria capaz de inventar uma história assim, é obviamente culpado. Sem pestanejar, a notícia é espalhada para todos os pais que, preocupados com a segurança dos filhos, não pensam duas vezes em transformar Lukas em um pária. Ninguém duvida da culpa dele. O amigo de longa data Theo (Larsen) chega a receber Lukas em casa com certa tranquilidade depois da acusação, apesar de ser o pai de Klara. A fotografia coloca a residência na penumbra, jogando um pouco de luz na face de Theo, mostrando que existe um pouco de razão na cabeça do personagem. Mas a situação muda quando a esposa dele aparece, o que o faz mudar radicalmente de atitude, ao ponto de agredir fisicamente o amigo. Mais tarde, mesmo com Klara admitindo para a mãe que o professor não fez nada, a mãe manipula a própria filha dizendo que ela pode não se lembrar, mas que sim, ele é culpado. Tudo isso apenas complica mais a cabeça da menina, que em momentos diferentes diz que não tem certeza do que aconteceu, e em outras diz ter.
A construção e a atuação de Mikkelsen como Lukas é outro marco desse filme. Os olhares e a postura refletem bem cada momento do filme. Ele se mostra carinhoso com Klara, nunca a acusando ou demonstrando algum tipo de ódio por tudo que a menina o fez passar. Eventualmente, ele perde o chão, porque as dúvidas afetam até mesmo o seu relacionamento com Nadja. Só quando o filho de Lukas aparece para tentar ajudar o pai é que a situação se estabiliza, mas fica bem claro que as pessoas não vão parar enquanto o professor não pagar pelo que supostamente fez.
O diretor usa de outros elementos visuais na trama que reforçam a produção. Vinterberg usa pelo menos duas vezes de símbolos fálicos para apontar a direção que a história irá tomar, que parece bem improvável se anilarmos apenas o início. Ele também faz com que Klara tenha um tique quando mente. Notem que ela faz isso na cena da sala da diretora, quando é direcionada à responder como o psicólogo exige, e não como as coisas foram. Por ser um filme com a temática de caça esportiva como plano de fundo, Lukas é filmado contra paredes expondo troféus, uma forte relação com a figura que lhe foi imposta.
“A Caça” ainda tem um espaço para explicar a questão de como Klara poderia saber o que sabe. Não foi apenas de uma fala e de uma foto, mas existe uma rápida cena no natal onde o irmão dela chora, como mais semblante de culpa do que tristeza. E a grande pergunta que fica é que se depois de tudo o que aconteceu, é possível voltar à apertos de mãos, abraços e outras coisas que poderiam manter uma comunidade unida? A resposta do diretor está no filme, numa figura contra luz, indefinida, que pode ser qualquer um. Um drama forte, pessimista e necessário.
A Caça concorre ao Oscar 2014 na categoria Melhor Filme Estrangeiro.