Xingu (2012, Brasil) [Crítica]
Com João Miguel, Felipe Camargo, Caio Blat, Maiarim Kaiabi, Awakari Tumã Kaiabi, Adana Kambeba, Tapaié Waurá, Totomai e Maria Flor. Roteirizado por Elena Soarez, Cao Hamburger e Anna Muylaert. Dirigido por Cao Hamburger (O Ano em que Meus Pais Saíram de Férias).
A história apresentada em “Xingu” é tão recente que é difícil acreditar que as tribos presentes na história foram praticamente dizimadas. A história das lutas dos irmãos Villas-Bôas na defesa dos interesses dos índios é apresentada com muita competência e beleza nesse ótimo filme, dotado de boa uma direção e atuações e utilizando a natureza que parece intocada como plano de fundo, e a presença de índios das tribos citadas dá o ar verossímil necessário. Algumas poucas falhas no roteiro, que parece correr demais para apresentar mudanças bruscas de personalidade do trio principal, e a falta de profundidade de alguns dos personagens secundários tira um pouco do brilho da produção. Mas isso não diminui a experiência.
Os primeiros momentos de “Xingu” vão dar a tonalidade do filme. Claudio Villas-Bôas (Miguel) e seu irmão, Leonardo (Blat) se misturam aos sertanejos motivados por aventura: se enchem de poeira, fingem não saber ler nem escrever para se misturarem. Mantém um aspecto mais claro do que os outros na fila, principalmente nas roupas e tem o primeiro confronto com um militar sisudo, que encara os dois até saírem de sua vista. Esse confronto se torna uma predestinação de um evento mais a frente (não posso afirmar que aconteceu desse jeito, porque no início do filme nos dizem que o filme ele foi inspirado em fatos reais, mas adaptados com uma certa liberdade). Quando somos apresentados a Orlando (Camargo), o terceiro irmão, a câmera mostra a parte alta do centro de São Paulo, que é um dos poucos lugares da cidade que ainda mantém a cara da década de 1940. Nesses cenários distintos, o diretor de fotografia Adriano Goldman mostra uma combinação de cores bem mais escura para mostrar a cidade, e o diretor opta por deixar Orlando num ambiente bem apertado, para logo depois, já no início da expedição “Roncador-Xingu”, usar cenários amplos. Há em especial uma jogada de câmera muito bonita, quando a câmera aproxima em zoom num detalhe da flora local, fazendo relação enquanto os exploradores avançam mais em território desconhecido. E para apresentar os índios, Hamburguer vai da escuridão, passando pela penumbra, até o encontro propriamente dito. O encontro dos irmãos Villas-Bôas com a primeira das tribos tem um ar de descobrimento, historicamente falando. Eles presenteiam os índios com o que tem consigo — panelas, facas e outros utensílios — fazendo uma relação com a história oficial do descobrimento do Brasil. Mas nesse momento que a tensão acaba, e as risadas tomam conta da cena, em travellings circulares, mostrando várias pontos de vista e aproximando povos que não tem a língua em comum.
Os três sentem uma ligação muito forte com os nativos brasileiros, em especial Cláudio. E acompanhamos a tristeza deles quando percebem que a presença deles trouxe doenças então desconhecidas do povo indígena. Os momentos finais do cacique Izaquiri (Waurá) são dotados de uma pressa e de uma tensão muito grande, que culmina numa cena triste e mais escura dentro da oca. E, como a tempestade na cena seguinte mostra, as coisas estão para se complicar: passando por índios que estão em regime de semi-escravidão (os Caiubi usam roupas do homem branco; já estão contaminados), intriga entre tribos (pelo próprio sistema tribal), e o interesse da terra “desocupada” por fazendeiros e políticos. Os irmãos consideram estar numa grande missão, praticamente uma cruzada para isolar os índios o máximo possível da influência do homem branco (com o argumento de que “índio civilizado não é índio).
Durante a projeção podemos notar alguns detalhes que fazem o cenário ser mais interessante. Por exemplo, os detalhes vermelhos do avião em que os Villas-Bôas se acidentam (prevendo um mau momento); a posição de desistência de Leonardo, deitado e atirado no chão depois desse acidente (anunciando a morte prematura mais à frente); a fotografia que fica mais escura na selva no posto Caiubi (que antes era exclusiva da cidade grande), acentuando a tristeza de Cláudio; e a discussão entre Orlando e Cláudio, cada um acusando o outro de jogar com interesses dos índios, enquanto eles mesmos ficam na penumbra, como se isolados do cenário que estão e ajudaram a construir…
Mas existem alguns problemas durante os 103 minutos de filme. Um dos personagens do começo da expedição chega a aparentar que vai ser um problema: a arma sempre em punho, e vestido com cores verde-oliva (se aproximando das cores dos uniformes dos militares) dá um ar ameaçador, mas a questão não é desenvolvida. Já no momento da queda do avião, os efeitos especiais da tremedeira do são muito fracas: eles não tremeram o avião em estúdio, mas fizeram isso na pós-produção, dando um ar enorme de amadorismo. A morte de Leonardo acontece e vai embora muito rapidamente, com só uma cena de emoção e parece que o assunto também morreu ali. E faltou um aprofundamento maior na teoria conspiratória do ódio que os Villas-Bôas colheram pela missão deles.
Mas os momentos antes do final do filme são de uma beleza incrível, (pequenos SPOILERS aqui) quando Orlando e Claudio não tem outra opção a não ser tentar salvar os Krem, última tribo da região sem contato com o homem branco, por causa da construção da Trans-Amazônica. E quando encontram um deles, ele está lá parado olhando para os irmãos, todo pintado de preto e segurando um facão que reflete a luz do sol, com um olhar muito triste: é tarde demais, e ele já está contaminado… um momento de aplaudir a direção. E talvez o filme devesse acabar aqui (fim dos SPOILERS). Compartilhe ou não da ideia do filme, a história é bem construída e que merece ser vista assistida. É mais uma prova que o cinema nacional consegue criar boas obras, e espero que um dia eu posso sentar numa sala para assistir uma projeção dessas sem que sejam necessárias 14 telas de apoio e patrocínios. E notem a cena final, anunciando a esperança de integração entre os povos.