Vidro | Crítica | Glass, 2019
Diferente de outros filmes de super-heróis, Vidro é o exemplo da renovação que esse gênero precisa, funcionando sem grandes efeitos e orçamentos.
Se existe algo que Shyamalan consegue criar na sua audiência é a expectativa. E agora, ao final da espera, precisamos encarar Vidro de frente. Em comparação com o universo que se encontra, é a aventura menos empolgante da trilogia iniciada em 2000 – mas não menos digna de ser apreciada. Ao invés da tensão do filme anterior ou da procura pela razão de alguém existir nesse mundo, essa conclusão é mais direta ao ponto, usando seus primeiros minutos para fazer reconexões e não demora para mostrar o que realmente queremos ver. E não só um filme de confrontos físicos: há espaço para jogos mentais, questionamentos se aquilo que o diretor mostra é real e a tradicional virada do indiano. E há um carinho naquelas linhas escritas, justificando decisões que parecem providenciais demais numa história que divaga sobre como o mundo se prepararia para super-seres de verdade.
Com um mundo interconectado como o nosso, David (Willis) não está alheio aos movimentos da Horda/Kevin/Patricia/Dennis/Hedwig/Fera (McCavoy – que para facilitar vamos chamar apenas de Kevin/Fera). Assumindo o papel de um vigilante, alcunha dada pela mídia, o personagem age como um Batman, mas sem o poder do dinheiro. Tendo que se virar com seu filho como assistente e sendo seus ouvidos, algo parecido com a personagem Oráculo, ele tem um emprego comum na área de vigilância que o deixa mais perto da ação. E como o mascarado de Gotham e tantos outros heróis, ele concentra suas ações na cidade berço. Essa não é única semelhança com um mundo que conhecemos bastante, mas servem para reforçar que esse é sim um filme de super-heróis.
Isso sem esquecer também que é um filme humano. Tanto Casey (Taylor-Joy) e Joseph (Clark) são os contrapontos pé-no-chão de David, Kevin e Elijah/Senhor Vidro (Jackson). E pela visão da psiquiatria com a Drª Ellie (Paulson) nos perguntamos se podemos de verdade acreditar no que vemos. Por exemplo, em Fragmentado (Split, 2017), Kevin/Fera escala uma parede, mas ela tem uns gomos que poderiam facilitar isso. E em Corpo Fechado (Unbreakable, 2000), David realmente levanta bastante peso, mas ele parece ter certa dificuldade em enforcar o bandido do fim do filme. A dúvida que a Drª Ellie coloca na cabeça daqueles mais próximos do trio é colocada também na nossa, pois nos identificamos mais com eles – não por afinidade, mas por nossas próprias limitações.
É verdade que não é a primeira vez que a abordagem de como a sociedade aceitaria superseres reais é tratada, mas é interessante como Shyamalan trata isso visualmente na história. Esse efeito é alcançado tanto pela fotografia de Mike Gioulakis – que dá um tom pastel aos cenários, como se estivéssemos dentro de alguma névoa – como pela opção de vermos muitas cenas pelas câmeras de segurança do hospital psiquiátrico que o trio David-Kevin-Elijah são enviados. Se somos constantemente questionados na nossa própria percepção que esses três são personagens que os quadrinhos tomaram explicação, cada vez que eles são extirpados desse poder por meio de algumas palavras. E quando os observamos por câmeras é como se jogássemos uma luz do nosso mundo real e sem graça em cima deles.
Eventualmente, nos encontramos tão confinados quantos os personagens se encontram, duvidando de nós mesmos assim como David e Kevin começam a fazer também. Claro que o nome do filme entrega que o protagonismo é do Sr. Vidro, e é um desafio encarar a sua mudez por todo o primeiro e segundo ato. Ele parece o mais contido do três e assumimos que a mente brilhante de Elijah está confinada em seu corpo drogado, o que mostra uma perspicácia inicial da Drª Ellie. Ainda que ela passe parte do filme dizendo que o trio principal tem uma ilusão de grandeza, ela sabe que Elijah é perigoso e o trata como um super-vilão deveria ser tratado: se não puder ser usado, que seja isolado.
Assim como os outros filmes do diretor, é preciso ficar atento às dicas que ele vai nos fornecendo ao longo da projeção. Porém, Shyamalan se vale dessa já apontada dinâmica para esconder um pouco mais as surpresas preparadas. Em alguns momentos vamos nos pegar pensando nas conveniências como Elijah conseguindo sair de seu quarto e a maneira como Kevin engana um dos seguranças já perto da conclusão, por exemplo. Como acontecia nas partes mais criativas do seu cinema, o diretor nos leva para um caminho para depois nos puxar dele e, reforçando, dicas estão todas ali, apesar do grande esquema das coisas ser montado apenas na conclusão – e mesmo nesse momento ainda sobra espaço para mais um pouco.
Vale a pena dizer também que a produção que poderia ser mais rasa poderia ser vista apenas como um filme de super-heróis. Mas existe uma discussão ali escondida embaixo da camada mais visível sobre status quo. Com o estabelecimento de uma força antagonista aos três seres, que poderiam ser considerados semideuses entre nós, Shyamalan entra finalmente em como a sociedade se prepararia para um Super-Homem – numa decisão bem mais factível que a encontrada num certo filme de anti-heróis. Então nós, como homo sapiens e detentores do poder estabelecido desde que eliminamos os neandertais, perseguimos os diferentes. Se em filmes como os da Franquia X isso é levado ao extremo, aqui o diretor nos tira da exageração da verdade, algo que Elijah aponta em Corpo Fechado.
E se formos pensar na conotação bíblica do nome do Sr. Vidro, podemos abrir mais nossos horizontes. O profeta bíblico de mesmo nome, Elias, veio para a mostrar que apenas Jeová era deus em frente aos adoradores de Baal. Mas ele não trata Kevin e David como divindades, e sim como seres que são o que são. Então, esse Elias moderno faz como o de outrora, querendo mostrar ao mundo a verdade. E como ele alcança esse povo pode não ser tão dramático quanto pedir que venha fogo do céu, mas não menos impactante. A diferença é que o mundo real é um lugar triste e que muitas vezes grandes verdades demandam grandes sacrifícios, algo que já éramos avisados tanto pelo visual envelhecido de David quanto à já citada fotografia.
Poderíamos esticar até mesmo o alter-ego de Elijah para falar de mentiras e verdades. Se por um lado o vidro é frágil, ele pode ser usado como ferramenta – algo que de fato Elijah faz. E se o propósito da vida dele é encontrar alguém no espectro oposto, podemos dizer que essa é a procura por algo sólido – a verdade é o oposto da mentira, e o Sr. Vidro dentro de seu corpo frágil precisa achar essa solidez. São confrontos usados de maneira simbólica por Shyamalan e é um ótimo exercício ficar pensando nessas analogias, mesmo que isso só seja possível após sentarmos e pensarmos na experiência.
E por isso que Vidro não é um filme de reações diretas, algo que parece que tomou a internet a cada trailer de filmes de super-heróis que aparecem. Num mundo onde fomos tomados pelo CGI, trailers e teasers de cada grande lançamento, um filme com um olhar um pouco mais profundo ao diferente consegue verdadeiramente colocar um drama em personagens que podem entortar aço com as mãos, escalar paredes ou elaborar planos maquiavélicos mesmo confinados à uma cadeira de rodas. É um filme de super-heróis que não se propõe a revolucionar o gênero, mas com certeza é o mais inteligente deles ao brincar com o que foi estabelecido em outras produções. Pode até ficar ofuscado até o próximo lançamento da Casa das Ideias, mas valerá mais a pena revisitá-lo daqui alguns anos.
Elenco
James McAvoy
Bruce Willis
Anya Taylor-Joy
Sarah Paulson
Samuel L. Jackson
Direção
M. Night Shyamalan
Roteiro
M. Night Shyamalan
Fotografia
Mike Gioulakis
Trilha Sonora
West Dylan Thordson
Montagem
Luke Ciarrocchi
Blu Murray
País
Estados Unidos
Distribuição
Walt Disney Pictures
Duração
128 minutes
Data de estreia
17/jan/2019
O encontro entre o Sr. Vidro, David Dunn e a Fera está para acontecer. Mas será que eles são o que acreditam que são?
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