Matrix Resurrections (The Matrix Resurrections, 2021) • Crítica
O que é a vida, se não uma procura pelo sentido dela? Isso era o mote de Matrix em 1999 e continua sendo em Matrix Resurrections. Claro que o que buscamos varia de pessoa para pessoa. Pode ser pelo criador, sucesso ou significado, mas tudo se resume, no fim, por preencher um buraco que é a nossa existência e como fazer isso é a missão de cada um. Existe um perigo a espreita de preencher com mais vazio, e de novo estamos falando aqui de algo subjetivo, mas, sendo o cinema uma arte e que começa com uma tela vazia, assim como a pintura ou a literatura, para contar uma história que é, antes de tudo, sobre amor.
Se fala de um Matrix 4, que agora se chama Matrix Resurrections, desde praticamente o sacrifício de Neo (Reeves) e Trinity (Moss) em Matrix Revolutions (2003). E foi uma boa coisa essa separação de duas décadas, olhar para o passado em perspectiva ao invés de simplesmente entoxar filme atrás de filme. E mesmo essa sendo uma franquia, com mais possibilidades de expansões, Lana Wachowski encontra um espaço para fazer piada disso, inclusive transformando os primeiros minutos do novo filme em uma sátira dos remakes quando apresenta Bugs (Henwick) e o novo Morpheus (Abdul-Mateen II). Também serve para colocar a pulga atrás da orelha dos espectadores.
A nova produção tem, indubitavelmente, várias pontadas de nostalgia, sabendo que sem ela o filme não seria tão envolvente. Isso é tanto uma benção quanto uma maldição, porque para quem visitou anteriormente e recentemente as produções do começo do fim dos anos 1990 e começo dos 2000 vai se encontrar em situações tão semelhantes que conseguem até prever algumas coisas. Isso não quer dizer que não haja espaço para surpresas, e até bom que Wachowski não se deixe levar por grandes viradas de roteiro. De novo, as alegorias são simples, ou pelo menos a são para quem já está calejado com a trilogia e nos elementos que as irmãs usaram no passado para costurar a produção de 1999.
Isso quer dizer que esse novo Neo, ou novo Sr. Anderson, não é tão novo assim. Há nele uma hesitação para embarcar na missão como a escolha de não ir para o parapeito do primeiro filme, apesar de menos dramática, e a dúvida entre o que é real e virtual. Mas temos que torcer o braço para a interpretação do analista de Thomas (Harris) em deixar a dúvida no nosso protagonista que, lembremos, tem o nome de Tomé quando traduzido. Claro que não é original, esse tipo de interação é possível de se achar desde Preso na Escuridão (Abra los Ojos, 1997, Dir Alejandro Amenábar), ou algum episódio de Além da Imaginação ou até de Smallville.
Outro elemento que deixa a desejar são os flashbacks. A princípio, eles servem de âncora para os que não revisitaram a trilogia original recentemente e para quem, por acaso, cai de paraquedas na sessão. Mas serve mais como elemento nostálgico do que narrativa. Por outro lado, é usado de maneira eficiente vez ou outra, em especial quando Morpheus e Bugs tentam resgatar Neo do seu novo sono e projetam as memórias num cenário que emula onde ele conheceu o Morpheus original. Claro que isso impede um frescor total, e, de novo, cai perigosamente num lugar onde precisaria ser chancelado pela história pregressa.
É verdade que esse tipo de abordagem deixa pouco espaço para novidades. Esse peso, por assim dizer, permite que a diretora se desvie pouco das balas que a trilogia original disparou. O que ela faz então, para tentar alcançar algum frescor, é brincar com os conceitos do primeiro filme que foram esticadas por ela própria nas continuações. Mas é visível que Lana quis incorporar mais elementos para rechear melhor o universo que criou. Um deles é dar mais um clima de terror com os bots – que parecem saídos de filmes de zumbi – e da maior preocupação que todos nós temos, de não sabermos quem acreditamos ser.
Isso reflete um pouco no que foi dito no parágrafo inicial. Talvez o maior medo de nós como humanidade, em paralelo ou de não encontrarmos propósito, e não sabermos quem somos. Digo isso porque é bem provável que a cada 100 pessoas que quando perguntadas o maior medo de se envelhecer, 99 dirão doencás neurodegenerativas como o Alzheimer. Ou, no caso de pessoas trans, estar dentro de um corpo que não se identificam. Essa é a maior novidade do filme, digo em termos de construção de personagem e, do seu jeito, um terror. Considerando que o espelho é um elemento que aparece muitas vezes, imagine como é apavorante não se reconhecer no espelho.
Eu sei que é tentador resumir Matrix a um filme de ação como tantos outros – apesar de ter a plena consciência de que o terceiro filme é exatamente isso. Prefiro pensar, no entanto, que a intenção de Lana (e Lilly quando ainda estava envolvida) é ir além dessa plasticidade técnica, sem tirar a importância dela. Afinal de contas, o próprio conceito de bullet time é alvo de sarro nesse Matrix Resurrections. Sendo Lana uma das donas desse universo, ela parece ser a pessoa com mais autoridade para fazer isso. E com o novo filme, a diretora toma para si as dores e a responsabilidade do universo que pode ser continuado e expandido, agora que a produção está devidamente lançada.
O pecado mortal da produção está realmente no seu desfecho, onde a diretora preferiu a segurança ao invés da ousadia, apesar de todos os elementos para tal estarem a palma da mão. Num misto de passado polido com novos efeitos especiais – que dessa vez não parecem ter sido tirados de um videogame –, a nova produção é muitas vezes se calcada nas referências do que olhar para frente, ainda que a diretora insira aqui e ali elementos que possam vir a serem usados mais a frente como uma nova história. É bem possível a intenção tenha sido a passagem de tocha para uma nova geração, mas faltou muito para isso se concretizar. O que significa que precisaremos de mais um filme para que isso se torne realidade.
Mas é preciso não cair em lugar-comum é dizer que este um filme de ação genérico. Quem diz isso não consegue passar da primeira camada, muito bem polida, e precisa rever seus conceitos. Os efeitos especiais, muito melhores do que os de 1999, claro, serve sim como chamariz. Tentem pensar dessa maneira: num mundo onde o ódio é regra, Lana trouxe uma história de amor e de descobrir quem se é azeitada por golpes de kung fu e com gente voando.
Tomemos de exemplo o plano do vilão, que se não quer destruir o mundo, pretende dominá-lo. Descartem a praticidade, ou até mesma possibilidade, da ideia em si. O que ele quer fazer é transformar Neo e Trinity em baterias, o que faz um paralelo sobre como o amor é entendido no campo da neurociência: uma reação química. Antes o Arquiteto e o próprio Smith desdenharam desse sentimento por acreditarem que, por não passar de algo que é feito para nos reproduzirmos, não nos distingue como seres de interesse. Mas o que Lana faz não é negar que amor seja químico, mas dizer que não é por isso que não é verdadeiro.
É bem importante frisar que apesar de que a diretora nunca ter se posicionado exatamente como um anticapitalista, sua irmã já mandou em alto e bom som duas figuras da extrema direita mundial – Ivanka Trump e Abraham Weintraub – para aquele lugar. Acredito que podemos nos ater na ideia que as duas pensam de maneira similar pelo que vimos em Matrix Resurrections. Por enquanto, pode ser que Lana não consiga dizer as mesmas coisas que Lilly, pelo menos verbalmente. Então, ela usa sua obra, uma ferramenta que pode ser usada para qualquer um dos lados.
E você já escolheu qual?
Matrix Resurrections: Ficha técnica
Direção: Lana Wachowski. Roteiro: Lana Wachowski, David Mitchell e Aleksandar Hemon. Elenco: Keanu Reeves, Carrie-Anne Moss, Yahya Abdul-Mateen II, Jessica Henwick, Jonathan Groff, Neil Patrick Harris, Priyanka Chopra Jonas e Jada Pinkett Smith. Fotografia: Daniele Massaccesi e John Toll. Montagem: Joseph Jett Sally. Trillha sonora: Johnny Klimek, Tom Tykwer. Distribuidora: Warner Bros. Pictures. Cena extra.