O Irlandês | Crítica | The Irishman, 2019
Mostrando um lado da Terra dos Livres muitas vezes escondida, O Irlandês é um passeio pela má história dos Estados Unidos e dos melhores filmes de Scorsese.
Entre discussões sobre o que é cinema ou não, Scorsese em O Irlandês confirma que continua sabendo fazer cinema. O filme é um grande passeio por um dos seus temas favoritos, a máfia, e também uma visita à história mais suja dos Estados Unidos, aquela que nenhum político em sã consciência quer atrelada à terra dos livres, mas que é parte inerente de um caldo que mistura crime e política, evidenciando a linha tênue entre esses mundos, isso é se existe. Mostrando que ainda está em forma, o diretor nos leva por um épico moderno, mostrando uma cicatriz faz parte de uma nação que muitas vezes se apresenta com perfeita.
A história é apresentada como uma memória, melhor seria dizer uma confissão de Frank Sheeran (De Niro) sobre seus tempos de mafioso, sua relação com Russell Bufalino (Pesci) e Jimmy Hoffa (Pacino). Sem lembrar dos eventos em ordem necessariamente cronológica, a viagem que começa no asilo onde o agora idoso ex-criminoso está se torna, dentro e fora de sua mente, um road movie. Isso porque ele começa do momento que pegou uma estrada para um evento que marcaria sua vida para sempre. E dirigindo para Russel, ele lembra da história dos dois, da própria história dos Estados Unidos e como essa sempre esteve envolvida com o crime de uma maneira ou de outra.
Curiosamente, é um fato que as narrações off de Frank não irritam como tantas outras produções costumam fazer. Primeiro por se tratar de uma assinatura do diretor – que não aparece em filmes mais fantasiosos como A Invenção de Hugo Cabret (Hugo, 2011) ou Ilha do Medo (Shutter Island, 2010) –, depois pelo já mencionado estilo confissão do personagem, então faz sentido entendermos a história pela voz dele. Aqui há um conflito com o “mostre, não conte”, mas por tentar emular o que foi a experiência real do personagem, faz sentido como Scorsese usa esse elemento, mas sem deixar que seja uma muleta narrativa, apenas um guia para as memórias de alguém já idoso.
Da mesma maneira, há o elemento da fé católica, uma obsessão desses mafiosos que abraçam igrejas enquanto manda assassinar rivais. Esse mundo torpe é o resumo da terra das oportunidades, com um diretor se perguntando se essa oportunidade está disponível para todos ou só para aqueles que realmente tem o poder. A separação de mundos está bem apresentada na primeira interação de Frank e Russell: enquanto o primeiro era só um motorista, o segundo era o rei daquele lugar, que não se apresentou ao irlandês, apenas lhe deu uma ajuda e permitiu a ele, por um momento, ter a graça de sua presença. Apenas quando Frank se desvia da simbólica estrada do trabalhador honesto é que ele consegue ser notado e aceito por Russell.
Esse novo caminho que Frank começa a trilhar acaba sendo bem familiar. Antes ele participou de uma guerra, longe de casa, e agora entra em outra, também cheia de violência. Você já ouviu, muito provavelmente, relato de soldados que se alistaram muito jovens, alguns mentindo a idade, procurando um sentido ou aventura durante todos os grandes conflitos da humanidade. De certa maneira, Frank é esse jovem tanto nos tempos do exército quanto nos trabalhos para a máfia. Antes ele, assim como vários, acreditava num ideal e que poderia sair-se bem de lá. Mas seus relatos com Russell mostram o contrário. E por causa desse novo chefe, ele cai outra vez numa armadilha, acreditando de novo que seria outro passeio. Até que a realidade bate à porta e o lembra do mundo que está.
Sim, Frank está numa nova missão. Uma que o afasta da família, principalmente da silenciosa e observadora Peggy (Paquin) – que tem, se muito, três minutos de fala no filme. Então, através de alegorias, Scorsese coloca a mão na ferida belicosa dos EUA, onde muitos vivem numa ilusão que se pode sair incólume de um conflito dessas proporções. Pode ser uma coisa pequena, como quando Frank espanca um vendedor que foi rude com a filha, mas sempre começa assim, com as coisas que podem parecer insignificantes, até se encontrar pintando paredes de vermelho em nome da lealdade, mesmo que isso signifique passar por cima da amizade.
Por isso não exagero afirmar que a comparação que o diretor faz com instituições são o grande mal daquele país. Esses poderes estabelecidos, seja o oficial do exército ou o paralelo da máfia, funcionam do mesmo jeito, existindo para quebrar a alma sem se importar com o resultado. Voltando ao imaginário religioso, o que acontece para o nosso protagonista irlandês é o inferno na Terra, o da rejeição de sua própria descendência, uma maldição de proporções bíblicas. Frank não percebeu, assim como tantos, que aceitar a tentação de dinheiro ou poder é a isca que esses poderes usam – deixando de lado, propositalmente, que tudo que você ama está atrelado à segurança da cabeça.
Com mais de três horas de duração, é um tanto desafiador assistir O Irlandês numa sentada só, e talvez por isso Scorsese tenha escolhido a Netflix, para dar um respiro que os cinemas comerciais com suas salas stadium não permitem por questões financeiras. Mas, vindo de alguém que assistiu na sala escura, esse tempo não é sentido. A cadência da montagem, da atuação maravilhosa de todos envolvidos, e essa sensação de impotência para querer ajudar os protagonistas nos sugam por todo esse tempo. A história da máfia com os EUA é longa como a confissão de Frank para nós, e ainda assim, sabemos que há mais bem mais.
Elenco
Robert De Niro
Al Pacino
Joe Pesci
Anna Paquin
Direção
Martin Scorsese
Roteiro
Steven Zaillian
Baseado em
I Heard You Paint Houses (Charles Brandt)
Fotografia
Rodrigo Prieto
Trilha Sonora
Robbie Robertson
Montagem
Thelma Schoonmaker
País
Estados Unidos
Distribuição
Netflix
Duração
209 minutos
Data de estreia
27/nov/2019 (Netflix)
A vida do Irlandês Frank Sheeran parecia como a de qualquer trabalhador comum, até cruzar o caminho de Russel Bufalino, o que o levou ao mundo da máfia, a Jimmy Hoffa e um dos grandes mistérios da história dos EUA.
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