Eu Não Sou Seu Negro | Crítica | I Am Not Your Negro, 2016, EUA
Eu Não Sou Seu Negro é um importante documentário sobre a vida e a morte dos principais ativistas negros dos Estados Unidos pelos olhos de um grande amigo deles.
Elenco: Samuel L. Jackson | Roteiro: James Baldwin, Raoul Peck | Baseado em: Remember This House (James Baldwin) | Direção: Raoul Peck | Duração: 96 minutos
Pode ser que eu, um homem branco de classe média que nunca foi abordado na rua por causa da cor da minha pele, não seja o mais indicado para falar da importância do documentário Eu Não Sou Seu Negro. Por outro lado, as palavras de James Baldwin ecoam na sala e na mente depois da sessão, exatamente a intenção do ativista social falecido em 1987. Apesar das reflexões do autor serem mais pertinentes à realidade do povo estadunidense, é impossível não se sentir mal com as cenas de violência direcionadas aos nossos semelhantes numa época que está distante apenas cronologicamente, e que infelizmente se aproxima cada vez mais de nós.
No documentário, Raoul Peck liga passado e presente baseando-se nos escritos de Baldwin, que não se tornaram um livro por causa de sua morte, numa clara e terrível sensação de que as reflexões feitas vinte anos antes parecem que melhoraram muito pouco. A narração off de textos e cartas na voz de Samuel L Jackson são acompanhadas diversas vezes de imagens atuais dos bairros que a presença negra ainda é a principal – sendo o Harlem o mais conhecido – o que pode tornar a experiência um tanto maçante. Peck usa essas imagens como a visão que o próprio Baldwin pode ter dito, entre um passeio e outro, um protesto e outro, uma visita e outra.
Alguns podem se perguntar se por causa disso não seria mais interessante então ler o que Baldwin tinha para dizer do que transformar suas anotações em filme. Porém é muito importante o uso das imagens, pois elas dão maior impacto ao que estamos ouvindo. Peck usa pedaços de propagandas, filmes de cinema, comerciais de TV, fotos e filmagens da época de Medgar Evers, Malcolm X e Martin Luther King Jr. – amigos e o foco do estudo de Baldwin – para lembrar o que pode parecer óbvio: quanto tempo o negro nos EUA foi tratado como um ser menor e subserviente. É muito mais triste e revoltante ver algum jovem ser espancado na tela do cinema, onde você pagou para estar e dificilmente poderá fugir o olhar, do que ler uma descrição, por mais fiel que ela seja.
Mais que apontar dedos, Baldwin tenta entender de onde vinha o ódio pelos negros, o que não é uma tarefa fácil. O autor faz investigações que vão além do fato de os negros terem sido escravos, mas como uma cultura perpetuada através de filmes e propagandas preconceituosas, a criação de um herói no estilo John Wayne e o discurso de salvar uma assim dita pureza branca. Muitas das frases de Baldwin ecoam na nossa mente, e uma das mais marcantes é “A história dos EUA é a história dos negros. E não é uma história bonita”. Por isso a opção de muitos momentos serem em preto e branco, apesar de alguns deles existirem em cores. A esperança de Peck é que com isso prestemos mais atenção no que estamos vendo e ouvindo.
Esses três homens – Medgar, X e King – são o elemento de ligação da narrativa e passar pela vida deles, através dos olhos de Baldwin, pode ser desafiador. Dependendo da sua visão política, X era um agitador e talvez você se identificaria mais com King; ou que King era um fraco e que as ações de X eram mais que justificáveis. E para a maioria, a história de Medgar é a menos conhecida – apesar dele também ter sido assassinado por sua participação no movimento antissegregacionista. A questão proposta por Baldwin é que esses estereótipos de X e King foram feitos para causar essa separação, mas que no fim de suas vidas, ambos estavam mais alinhados politicamente.
E nessa parte Baldwin se dirige à população negra que está assistindo, apesar do filme querer atingir cada um dos seres humanos presentes. Assim como tenta entender as origens do ódio, Baldwin também tenta alcançar os extremos, advogando que os brancos odiavam seus semelhantes não porque nasceram assim, mais porque foram condicionados – de novo, pela propaganda, pelos filmes. E sabendo que o cinema é um meio de comunicação de massa, o escritor usa do cinema para mostrar como outros tentaram a conciliação, em especial com os filmes de Sidney Portier.
Isso não quer dizer que Baldwin encarna a propaganda – ela mais uma vez – mentirosa que seus antepassados eram mansos ao tratar com seus captores e que as danças que aconteciam na senzala eram vindas da alegria. Não. Parece óbvio ter que reforçar isso, mas é uma lição que o filme faz bem ao esfregar na nossa cara como fomos enganados e como é possível que um dia alguém possa ter se considerado melhor que outro pela cor da pele. Assim como o massacre dos índios que originalmente ocupavam aquela região, os negros foram caçados, enforcados, tirados de seus lares para colher algodão por uma centena de anos e cair num mundo onde saíram sem nada e ainda tendo que lidar com a segregação.
É revoltante e até fácil se deixar levar pela raiva – se eu que escrevo me sinto assim, nem posso imaginar que passa por isso – e a proposta de Baldwin, apesar de dura, é fazer uma reflexão sobre esses anos. Peck faz o paralelo necessário com o cenário atual que vemos pelos protestos em Ferguson e o movimento Black Lives Matter, reforçando a talvez aquela que é a maior máxima dos livros de história: quem não conhece seus erros está fadado a repeti-los. Então é para isso que o documentário vem. Uma medida desesperada para que olhemos para dentro de nós e perguntar, afinal, que diabos está acontecendo conosco como sociedade.
Outra frase marcante de Baldwin é que “nós preferimos a ilusão”. E quando se fala de cinema é que parece se confirmar. Eu Não Sou Seu Negro é um dos filmes mais importantes que estrearam nesse ano: forte, contundente, verdadeiro e doloroso. Pois dói ter que ver o que nossos irmãos passaram e ainda passam. É um documentário com endereço certo ainda que, provavelmente, não vá mudar a opinião de quem não concorda com a proposta. Mas é importante que produções assim existam e muito mais importante que sejam exibidas, que façam barulho e sejam comentadas pelos que concordam ou discordam.
Eu Não Sou Seu Negro | Trailer
Eu Não Sou Seu Negro | Pôster
Eu Não Sou Seu Negro | Imagens
Eu Não Sou Seu Negro | Sinopse
O documentário reune as ideias que James Baldwin queria colocar no seu livro “Remember this House” sobre a vida e os assassinatos de Meggar Evers, Malcom X e Martin Luther King Jr, amigos do escritor e líderes ativistas do movimento antissegregacionista nos EUA. Narrado por Samuel L. Jackson, o trabalho inacabado agora é transformado em documentário por Raoul Peck que conta as histórias dessas figuras por manuscritos, cartas e imagens de arquivo da importante luta por justiça e direitos iguais.
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