As Boas Maneiras | Crítica | 2018
Passeando entre gêneros, As Boas Maneiras é um filme de terror urbano que lida com assuntos bem mais sérios.
Dentro do terror de As Boas Maneiras existem assuntos sérios a serem tratados. As alegorias apresentadas por Rojas e Dutra são pintadas com cores de medo porque, em escalas diferentes, são assustadoras – tudo depende do ponto de vista. Ao misturar gêneros – terror, romance, musical, comédia e até momentos de aventura – esse é um filme que sai do lugar-comum do cinema nacional, com viradas inesperadas, próprias do estilo principal, e mostra um frescor necessário na produção brasileira. Ainda que certos assuntos sejam mais característicos da realidade nacional, há outros universais, mostrando a habilidade da dupla como contadores e apresentadores de histórias, deixando que algumas lacunas sejam preenchidas pelo espectador.
À princípio, o terror da produção é algo bem real – principalmente se levarmos em conta o cenário econômico de hoje. Clara (Zuaa) vem de uma realidade muito diferente da de Clara (Estiano), espaços apertados dão lugar aos mais amplos, com a jovem negra da periferia precisando atravessar a cidade para se candidatar a um emprego. E diante do medo maior do trabalhador que vende a sua força de trabalho, que é ficar desempregado, aceita até tarefas que não fazem parte do combinado. Pois Clara responde a um anúncio de babá, mas com as contas batendo na porta, aceita ser a cuidadora, por assim dizer, de Ana – e apenas no futuro de seu filho.
Durante as primeiras interações, Ana trata Clara nos moldes mais tradicionais (estereotipados sim, mas verdadeiros) – a futura mãe é daquelas que deixa tudo para a empregada limpar, sequer pega um livro que ela mesma derrubou e a deixa com todas as funções da casa, como a de fazer compras e pintar o quarto do bebê. No entanto, essa aura de casa grande se dissipa quando conhecemos melhor a patroa. Podemos até dizer que Ana contratou Clara mais para ser sua amiga do que empregada. Como a gravidez dela foi fora do casamento, a goiana do interior é rechaçada pela sua tradicional família brasileira, deixada à própria sorte e, para esquecer, tenta manter um padrão de vida compatível com o passado.
A gravidez de Ana faz outro paralelo com essa realidade que atinge um número enorme de mulheres. Sozinha e abandonada pelo pai da criança, algo que é explicado pelo diferente flashback mostrado em pinturas, o peso dessa gravidez solitária se torna o terror de Ana, assim como em O Bebê de Rosemary (Rosemary’s Baby, 1968, Roman Polanski), ainda que por desenvolvimentos diferentes. Esse é um assunto sério, mas no filme de Rojas e Dutra é tratado de um jeito diferente quando lembramos da (tele)dramaturgia nacional. Essa nova vida que está chegando está tomando, involuntariamente, a de Ana e a presença de Clara se torna um alento – uma relação que desafia outro tabu da sociedade conservadora.
Além disso, o que chama atenção na narrativa é a fluidez da trama no tocante dos gêneros. Muitos momentos de terror são justapostos por outros, como a comédia, exatamente para reforçar esse medo. Podem ser coisas mais sutis, como a ferida que Ana causa em Clara depois de um beijo, ou a dança que se dá logo após uma cena forte para os amantes dos animais (uma que vai fazer a maioria se contorcer na cadeira). É algo atingido pela montagem, uma dessas magias próprias do cinema, que faz parte do realismo mágico dessa história que, por meio de símbolos, relembra que nós também temos mitos, mesmo que eles tenham influência externas (como a europeia).
Porém, há algo que pode tirar o espectador da narrativa. Nesse mundo mágico somos forçados a aceitar certas coisas acontecendo quase como mágica mesmo. Um desses momentos, na grande virada do filme que se dá com o pulo cronológico do filme, não condiz com a realidade que Rojas e Dutra querem emular no seu filme de terror – onde há uma tragédia e é difícil acreditar como Clara sai da situação sem ao menos passar por problemas mais sérios, dada a sua condição social. Há outras menores, como como Joel (Lobo) se safa de uma situação onde está preso numa situação que precisaria de um conhecimento mínimo dele ou do amigo, algo que não é indicado nos momentos anteriores.
A história se desenvolve entre alguns signos, uns dados por pinturas nas paredes de Ana, ou pela grande janela do seu apartamento ou por anedotas, como os comentários do médico durante o ultrassom da personagem. E Clara também passa por isso ao fazer sacrifícios pela mulher que se apaixonou, dando o próprio sangue para fazer o bem daquela que deixou de ser sua patroa, formando assim um laço que que a dita família verdadeira de Ana não quis manter – e aqui a dupla de diretores desafia outro dogma da nossa sociedade, o da família acima de tudo. Isso já havia sido colocado pela dita e expressada homossexualidade de Clara na cena do bar que poderia parecer perdida, mas serve para reforçar a orientação da personagem.
Rojas, assim como em seu Sinfonia da Metrópole, toma mão do musical para fazer seus personagens se expressarem. Assim como o único flashback da história é mostrado não por meio de filme, mas usando pinturas – reforçando o status de lenda -, essa abordagem é outra e muito bem-vinda maneira de colocar palavras sem que elas sejam apenas palavras, onde há uma dor enorme na cantoria de Clara. Nesse momento, da mesma maneira que no começo da história, ela está dividida entre dois mundos: um que fará tudo para proteger o filho ao mesmo tempo que procura maneiras de não alimentar a besta.
Por último, e não menos importante, essa também é uma história de amadurecimento. O jovem Joel comemora cada marca de giz na parede mostrando seu crescimento, como qualquer criança normal. E como é próprio da idade, essa é uma época de desafios e da percepção do seu próprio eu. O rapaz toma para si responsabilidades, como a tarefa que até um momento era algo feito pela mãe, e suas consequências. E isso, como costuma ser, cobra um preço – um que será pago naquele plano final, onde dois personagens mesmo sem laços sanguíneos enfrentaram o mundo e suas convenções, um que não entende as diferenças.
Como já estamos num mundo mágico, num universo com seres folclóricos, algumas conveniências de As Boas Maneiras são perdoáveis – mas é bem possível pensar que com mais de duas horas, esses momentos mereciam uma lapidação mais atenta. Tirando esse detalhe, a trama é mais importante por nos mostrar assuntos sérios por meio de outra ótica, uma que talvez escolhemos ignorar e que por meio de um terror incômodo tem a intenção de nos deixar desconfortáveis para que façamos alguma coisa, que tomemos uma atitude e que possamos entender, dentro das nossas bolhas, outras realidades. A produção é, no fim das contas, uma lição de empatia.
Elenco
Isabél Zuaa
Marjorie Estiano
Miguel Lobo
Cida Moreira
Andrea Marquee
Felipe Kenji
Nina Medeiros
Neusa Velasco
Gilda Nomacce
Eduardo Gomes
Hugo Villavicenzio
Adriana Mendonça
Germano Melo
Naolana Lima
Direção
Juliana Rojas
Marco Dutra
Roteiro
Juliana Rojas
Marco Dutra
Fotografia
Rui Poças
Trilha Sonora
Marco Dutra
Juliana Rojas
Guilherme Garbato
Gustavo Garbato
Montagem
Caetano Gotardo
País
Brasil
França
Distribuição
Imovision
Duração
135 minutos
Quando Clara aceita um emprego oferecido por Ana para que ela seja babá do seu filho, a jovem da periferia não imaginava que antes teria que cuidar da mãe. E esse não é o únuco desafio, pois a gravidez de Ana é envolta em mistérios que acontecem no período da lua cheia.
[críticas, comentários e voadoras no baço]
• email: [email protected]
• twitter: @tigrenocinema
• fan page facebook: http://www.facebook.com/umtigrenocinema
• grupo no facebook: https://www.facebook.com/groups/umtigrenocinema/
• Google Plus: https://www.google.com/+Umtigrenocinemacom
• Instagram: http://instagram/umtigrenocinema
• Assine a nossa newsletter!
Apoie o nosso trabalho!
Compartilhe!
- Clique para compartilhar no Facebook(abre em nova janela)
- Clique para compartilhar no Twitter(abre em nova janela)
- Clique para imprimir(abre em nova janela)
- Clique para compartilhar no WhatsApp(abre em nova janela)
- Clique para compartilhar no Telegram(abre em nova janela)
- Clique para compartilhar no Tumblr(abre em nova janela)
- Mais