007: Sem Tempo Para Morrer (007: No Time to Die) • Crítica
A cena inicial de 007: Sem Tempo Para Morrer – melhor dizendo, seu prólogo – é bem a metáfora do que está para vir e que já aconteceu em inúmeras histórias. O passado que bate a porta é um elemento tão saturado em qualquer nicho de entretenimento que fica bem difícil escapar de clichês e entregar algo não original, mas criativo pelo menos. O que Fukunaga faz então para tentar escapar desse peso, tanto histórico quanto simbólico, é apostar nas soluções mais dramáticas possíveis, ainda que isso não seja condizente com uma pessoa tão calejada quanto o protagonista. E explosões, muitas delas. Mas nem toda a ação do mundo salva a conclusão da era Craig.
Sem levar em conta a clássica introdução de James Bond (Craig) atirando em direção a tela, é uma opção interessante o prólogo mostrar como uma jovem Madeleine (Seydoux) escapou das mãos do sádico e desfigurado Lyutsifer Safin (Malik). Isso acontece porque estamos muito acostumados a Bond ser o centro das atenções, e há aqui uma tônica que é levada quase até o fim do filme que é de dar um pouco mais de atenção aos papeis femininos, principalmente com a introdução de uma nova agente 007, Nomi (Lynch) e de uma participação mais leve de Paloma (Armas). Apesar de que a jovem Madaleine ser mais propensa a ação do que sua versão mais velha.
Considero importante notar como o elemento da água é usado no filme. De novo, nada de novo, mas mostra como o diretor quis encaixar as coisas. Safin salva Madaleine de um afogamento, uma grande mudança na vida de Bond acontece no mar, e um confronto que o leva a maior decisão da sua vida acontece num pequeno lago. São vários batismos, várias renovações que levam os personagens a novos rumos, sendo um pouco diferentes do momento anterior. Se fazermos paralelos com o significado religioso da submersão na água, não fica tão difícil imaginar onde o diretor pretende chegar com seus simbolismos.
Porém, é impossível ignorar como o roteiro é frágil na construção dos vilões. A franquia Bond sempre teve um quê de apresentar vilões com planos megalomaníacos que querem dominar/destruir o mundo, apesar de quem em Cassino Royale (Martin Campbell, 2006) isso ser um pouco diferente. Mas Sem Tempo Para Morrer dá uma exagerada no tom. A começar pelo nome do vilão que, como comentei no meu vídeo no TikTok, se aproxima muito foneticamente de “Lúcifer” e “Stalin”, uma saída nada sutil, mesmo para uma produção que se aproxima de ser uma carta de alistamento ao Serviço Secreto – que pode ser do Reino Unido ou da CIA, na presença de Felix Leitter (Wright).
Outro problema de Safyn é seu desenvolvimento. Como desconfiei quando ouvi o nome pela primeira vez, o personagem logo é apresentado vindo da Rússia e seu complexo militar é de uma antiga propriedade soviética – numa determinada cena, onde Madeleine é ameaçada de um terrível destino se não cooperar, podemos ver a imagem da foice e do martelo ao fundo. Para completar, não sabemos muito como o terrorista pode ter conquistado tanto poder ao ponto de não chamar a atenção nem dos mocinhos na figura de M (Fiennes) nem da Spectre de Blofeld (Waltz). Ele é simplesmente um sádico que mata uma mulher alcoolizada sem defesa e quase mata duas menininhas. Só porque ele seria algum tipo de Stalin moderno.
Dito isso, é bem difícil não se deixar de levar pelas cenas de ação – cenas que transpassam até a importância de Nomi agora ser a 007. Isso pode até não ser visto como problemático, mas temos que pensar no símbolo disso. Com certeza é muito importante ver Nomi em ação, sem hesitar em pegar em qualquer tipo de arma, ou fazendo coisas simples como estar numa moto levando Bond ao invés de ser levada por ele, mas há problemas no desenvolvimento. E não é culpa da atriz, nem da personagem, mas da situação que ela é colocada pelo roteiro. Por exemplo, ao devolver a insígnia de 007 temporariamente para Bond.
Para quem se contenta com isso, a produção realmente não deixa nada de fora. O universo Bond mais uma vez tem belas mulheres, tiros, perseguição, uso de tecnologias inventivas e até sobra espaço para mostrar o que racista merece, ainda que o traço desse vilão em especial também beire uma caricatura devido a escalada de nunca se mostrar racista ao o extremamente racista em questões de segundos, apesar de estar do lado de um agente negra, armada e perigosamente treinada ao lado dele. São certas anuências do diretor em direção ao público mais acostumado com o cinema de ação.
Fazendo a devida justiça, a intenção dessa nova aventura de 007 não é a de ser uma quebra de paradigma tão grande assim. Pode se argumentar que termos Nomi chamando mais atenção que James ou como os planos de M que mostram que não devemos confiar sempre nas figuras de autoridade, mas é tudo descartado. Às vezes mais rápido, como a confiança de Bond ao antigo chefe, outras vezes mais devagar – apesar do filme ter 2h40min, bem distribuídos, é verdade.
Mas nem mesmo o estigma do vilão desfigurado escapa. Antes, Le Chiffre e Blofeld, cegos de um olho, e Raoul Silva, desfigurado por um acidente. Agora, Safin. Como se o mal ganhasse uma expressão física externa. Sabemos que isso é por uma questão de homenagem aos vilões da era clássica de Bond, mas isso é extremamente problemático no século XXI pelo estigma que pessoas com deficiência já carregam. Se alguns inimigos são difíceis de identificar, como diz M numa frágil tentativa de se justificar, algumas batalhas valem sim a pena ser encaradas.
Alguém pode argumentar que 007: Sem Tempo Para Morrer, não se trata de justiça, de mudar as coisas, mas apenas ser uma homenagem e despedida de Daniel Craig do papel. Isso é acertado, pelo menos superficialmente, pois há uma coragem na conclusão que não foi vista em outras produções que levam o nome do personagem de Flemming no cinema. Mas com aquela sensação de que poderia ser mais. Isso pode ser suficiente para estúdios e até para os fãs da franquia que sabem que James Bond irá (eventualmente) retornar, sendo um momento que pode levar para algo melhor. As bilheterias podem me dizer o contrário, mas precisamos refletir se aqui o escapismo de Bond não passou despercebido por uma pintura progressista.