Marighella (2021) • Crítica
É no mínimo curioso que a exibição tardia de Marighella, prejudicada em boa parte pelo estado que o atual governo vê a cultura, tenha ganhado mais força exatamente por causa de tal atraso. Então, além da qualidade na direção de Moura ou a força na atuação de quase todos presentes no filme sejam destaque, temos um distanciamento entre produção e lançamento que faz o filme ganhar um peso tão retumbante quanto a profunda e grave voz do protagonista interpretado por Seu Jorge. Isso é uma coincidência, claro, mas em tempos como o nosso, qualquer mensagem revolucionária merece ser reforçada, mas sem esquecer de como a produção já é contundente por si só.
Podemos discutir se é certo ou não que força é seja a única resposta possível para o enfrentamento contra a ditadura militar brasileira. Mas é sim uma delas. Moura apresenta uma ação de Carlos Marighella (Jorge) com bastante impacto, tanto na ação em si quanto no visual. O diretor se toma do plano sequência e da câmera na mão que dá a obra um estilo quase documental. Some isso as várias vezes que a câmera é colada no rosto dos personagens e temos um caldo tenso que é dissipado um mínimo número de vezes, contadas nos dedos de uma mão. O que dá um dinamismo espetacular, apesar das mais de duas horas de projeção.
Esse ar de documentário serve para marcar a realidade da trama, ainda que algumas liberdades artísticas tenham sido tomadas em nome do arco dramático de Marighella e da Aliança Nacional, inclusive justificando a duração do filme, típica de filmes do Universo Cinemático da Marvel, que passam 2h30, quando não beiram 3 horas. Isso não é um daqueles casos em que o diretor gosta tanto da obra que não deixa que a pessoa que irá montar o filme faça o seu trabalho – ainda que Moura esteja iniciando por detrás da câmera. Aqui, o diretor, que um dia interpretou um protofascista, considera que seu protagonista é nada menos que um herói, inclusive dando direito a uma cena pós-créditos com os outros heróis do filme.
Voltemos a questão de não termos muitos momentos de descanso e, como exemplo, tomemos a cena justaposta a do assalto ao trem para que ALN adquira armas para a luta. Marighella está ensinando o filho a não ter medo do mar. Um lugar de paz onde, junto de uma narração off que seria uma fita deixada pelo resistente para o jovem, o resto do mundo não importa. Porém, não demora nada para que a realidade cruze o caminho dos dois, onde Marighella e o filho são cortados por uma marcha de militares. A partir daí, de novo pela opção de poucos cortes pelos planos longos, praticamente não temos um minuto de paz.
Poucas produções são tão tensas com tanto significado. Aqui, Moura expressa por meio de sua linguagem que viver debaixo do coturno de um governo ilegítimo era isso mesmo, uma tensão constante. E é para isso que serve a cena de 1964 com o jovem filho do protagonista, um mundo onde a luta é necessária, o que não quer dizer que fosse desejada, representada por todas as vezes que o protagonista tira a foto do filho do bolso e a coloca em algum lugar, transformando aquele esconderijo num pequeno santuário. De novo, por causa no adiamento não-desejado, podemos criar um paralelo com as manifestações da esquerda que protestaram na rua durante a pandemia de Covid-19, indo por necessidade.
Isso não quer dizer que a produção seja isenta de problemas, sendo as maiores a atuação de Seu Jorge – que parece artificial e robótica na cadência das frases, construídas quase palavra a palavra – e uma forçada comparação de Cristo com o protagonista. Isso é um erro principalmente porque é algo muito perigoso personificar figuras, mesmo as revolucionárias. Essa comparação é feita por um dos freis dominicanos que ajudaram na luta contra a ditadura. Apesar de ter algo lógico, que Jesus para ter se escondido no Egito ele teria que ter a pele mais escura, a comparação quer dar algo se não sobrenatural, ao menos messiânico. Marighella foi um revolucionário, mas também foi uma pessoa cheia de virtudes e defeitos.
O que leva a outro ponto. Como toda obra é o intuito de seu autor, Moura não se importa nem um pouco de ser visto com maniqueísta. O que não é um problema, apesar de poder ser acusado disso por quem quer achar grandes defeitos no filme – outro foi acusar que Seu Jorge tem um tom de pele bem mais escuro que o Marighella de verdade tinha. Pois bem, o diretor não esconde nenhum momento o seu asco pelo Delegado Lúcio (Gagliasso, inspirado no Delegado Fleury, exímio torturado do DOPS), colocando em personagem em ações de violência e corrupção, um prato cheio de maldade. Há quem argumente que isso seria muito preto no branco, mas num país onde a Comissão da Verdade não foi levada a frente, e onde ainda não encaramos nosso passado devidamente, essa humanização não seria necessária.
Ao mesmo tempo, quem faz essa acusação esquece, ou não percebe, que Lúcio e sua gangue não são tratados como monstros. O que quero dizer com isso é que eles não são simplesmente figuras sem alma, como se fizessem o que fazem porque estão fora da esfera humana. Ao contrário, Lúcio é visto como pai além de torturador. O próprio Marighella toma uma ação no filme em que ele sabia que a levaria a ficar muito tempo longe do filho. Ou seja, quem diz que o filme pinta com muitas cores ruins os antagonistas do filme precisa perceber que, primeiro, esse tipo de gente não merece ter a história escabrosa atenuada, segundo, há sim tempo para mostrar que há mais por trás deles, mas nunca desculpando suas ações.
Marighella, o revolucionário, atrapalhava a vida da elite na época. Já Marighella, o filme, incomodou hoje, seja com a censura na época do lançamento original do filme ou a ação que tentou derrubar a nota do filme no IMBD através de robôs quando a produção foi apresentada em Berlim. Mesmo que o filme não seja um sucesso comercial, mostrou a que veio, incomodando quem tem que incomodar. Moura sabia que há batalhas que precisavam ser lutadas, então há algumas incongruências históricas. É uma luta injusta essa, mas ocupar todos os lugares é necessário. E quem bom que o diretor nunca negue a visão radical e tampouco tira da boca do protagonista do fato dele ser comunista. Ainda que, pelo bem do momento, prefira chamá-lo de brasileiro – o que é verdade, mas uma incompleta.
Ficha técnica
Elenco
- Seu Jorge (Marighella)
- Adriana Esteves (Clara)
- Bruno Gagliasso (Lúcio)
- Bella Camero (Bella)
- Herson capri (Jorge Salles)
- Humberto Carrão (Humberto)
- Luiz Carlos Vascncelos (Branco)
Equipe
- Wagner Moura (Direção)
- Felipe Braga e Wagner Moura (Roteiro)
- Adrian Teijido (Fotografia)
- Frederico Pinto (Direção de Arte)
- Antonio Pinto (Trilha Sonora)
- Verônica Julian (Figurino)
- O2 Filmes (Produtora)
- Paris Filmes / Downtown Filmes (Distribuidora)
