[Especial 36ª #MostraSP] Meu dia #2
Neste segundo dia, consegui assistir à mais duas produções fora do circuito comercial de Hollywood: o documentário sueco-germano-italiano “Memória dos Bálcãs” e a comédia italiana “Reality”. Eis meus pensamentos sobre as obras:
3) Melodia dos Bálcãs (Balkan Melodie, 2012, Suíça, Alemanha, Bulgária). Com Marcel Cellier, Catherine Cellier, Gheorghe Zamfir e Le Mystère des Voix Bulgares. Roteirizado e dirigido por Stefan Schwietert.
Marcel Cellier é desconhecido para metade do mundo, inclusive para mim. Porém, ele teve uma grande importância para mostrar ao mundo a beleza da música cigana da região das Bálcãs. O documentário “Melodia dos Bálcãs” mostra um Cellier já idoso, vivendo com a esposa e ainda apaixonado pela música que descobriu anos atrás, e as dificuldades que tinha durante a sua jornada por países que ainda estavam sob o domínio da cortina de ferro comunista de Joseph Stalin. O diretor foge de usar legendas definindo quem é quem na projeção ao usar chamadas de rádio para apresentar os personagens (mas não poderia dizer se foi áudio da época ou se foi aplicado algum efeito de para emular uma transmissão). O diretores de fotografia Pierre Mennel e Pio Corradi fazem um trabalho belíssimo, mudando o clima ao mudarem de país. Enquanto na casa dos Cellier a paleta de cores é muito mais quente e cálida, a viagem que o filme faz traz outros elementos. Schwietert nos mostra o músico mais popularmente desconhecido do cinema: Gheorghe Zamfir, professor duro e mestre na flauta de pan, já encheu várias vezes nossos ouvidos, pois ele trabalhou com Ennio Morricone em “Era Uma Vez no Oeste” (C’Era Una Volta Il West, 1968) e Bill Conti em “Karate Kid – A Hora da Verdade” (Karate Kid, 1984). O filme conta o ponto de vista de Celier, que gravou com o músico um duo de orgão e flauta de pan, mas que depois se deixou levar pela ganância, e com isso acabou com a amizade dos dois.
Schwietert também é competente ao mostrar como a vida de pessoas simples sofreram com o coletivismo russo, mas que não perderam o espírito, que foi captado por Cellier como música. Apesar do rompimento com Zamfir ter sido pesado, possibilitou que o pesquisador viajasse e estudasse com outros músicos, sendo um grande marco o grupo Le Mystère des Voix Bulgares (“O Mistério das Vozes Búlgaras”), que preservaram técnicas da idade média até as apresentações que fazem hoje. Dotado de discursos apaixonados pela música local, os envolvidos creem que nos Bálcãs está “a base da música universal” e que “a música ocidental está morta”.
O filme busca a preservação e difusão da música folclórica e cigana da região, num onde a aparência é que o tradicional acabou. Ligeiramente cansativo no começo, “Melodia dos Bálcãs” é a porta de entrada para uma música muito rica e pouco conhecida para os ocidentais. E também é um ode de amor à essa arte, que faz, nas palavras de Cieller ao final da projeção, “rejuvenescer”. (7/10)
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4) Reality (Reality, 2012, Itália). Com Aniello Arena, Loredana Simioli, Nando Paone. Roteirizado por Matteo Garrone e Massimo Gaudioso. Dirigido por Matteo Garrone.
É preocupante o crescimento de importância que os chamados reality shows tem na vida contemporânea. Em tempos de BBBs e Fazendas, se você não ficar sabendo do último eliminado, é capaz de ficar viajando nos primeiros minutos do seu dia no escritório. “Reality” trata muito bem dessa alienação que essas “personalidades” tem sobre os mais incautos. Garrone começa o filme num longo plano sequencia em plongé mostrando um casamento com toques renascentistas. Em outra cerimônia que está acontecendo no mesmo lugar, uma família tradicional italiana (daquelas grandes, com matronas, que falam muito alto e vivem muito próximas) o convidado de honra é Enzo, o mais recente ganhador do Grande Fratello (a versão italiana do Big Brother). Esse é a primeira estranheza que o diretor aponta nessa quase adoração. Por que alguém chamaria algum “semi-famoso” para um momento tão íntimo como um casamento, apenas para falar uma série de palavras e um discurso pré-pronto? Esse digamos “poder” atrai tanto o protagonista Luciano que, ao ver Enzo sair do casamento de helicóptero, cria um fascínio que o fará participar do processo seletivo para a nova edição do programa.
Luciano tem sua vida simples de peixeiro e complementa a renda da família fazendo pequenos trambiques. Mas depois que participa de uma entrevista ele se torna crente de que vai conseguir entrar no programa. Luciano entra numa paranoia e começa a perder a percepção de realidade, e cria toda uma fábula pela expectativa, pois ele quer um mundo orwelliano, achando que está sempre sendo observado e julgado. O personagem passa por uma mudança de caráter não por estar arrependido, mas por acreditar que todos seus passos são vigiados.
É interessante algumas decisões ao longo do filme, como a visual perda de foco de Luciano (justificando o rack focus), ou alguns tons azulados típicos de um ambiente iluminado só pela luz de uma TV ligada. A transformação do personagem e como ela afeta sua sanidade e a família é bem desenvolvida, e os passos que levam à essa doença são bem desenvolvidos na tela, e fazem que nos importemos e muito com Luciano. Por exemplo, numa cena que o cunhado de Luciano faz uma pegadinha com ele, sentimos muita pena da situação. Apesar do desenvolvimento da perda de percepção que Luciano tem ser vista de um jeito muito similar em “Réquiem para um Sonho” (Requiem for a Dream, 2000), “Reality” tem seus próprios méritos, sendo o principal o questionamento da importância exacerbada que tantos dão à pessoas que aparecem na televisão ou em qualquer outra mídia, que se transformam em criadores de tendência e enfiados goela abaixo por um sistema pífio de entretenimento. (8/10)