Vingança | Crítica | Revenge, 2018
Vingança é um filme direto e sem rodeios sobre o terror que as mulheres passam e uma homenagem a um sub-gênero do cinema trash.
Com um título desses, não poderíamos ser mais diretos: Vingança é um novo e bem-vindo filme do gênero do (se)xplotation, cheio de sangue – muito – violência daquelas que você tem uma vontade de virar a cara da tela e ao mesmo tempo continuar assistindo, uma estrutura bem conhecida de um subgênero, ainda assim marcante e interessante. O fato de ser dirigido por uma mulher é o que chama atenção, pois os filmes mais marcantes dessa leva foram feitos por homens. E ter um ponto de vista feminino traz frescor, mesmo sabendo como será o desenvolvimento da trama. Depois de sentar e ficar tenso com cada corte, tiro e perfuraçã, fica uma inquietação e uma prova que uma produção com uma pegada feminista é possível em qualquer gênero.
A diretora Coralie Fargeat, iniciante no gênero, não nega as influências. Em primeiro lugar temos o nome da protagonista, Jen (Lutz). Quem conhece filmes trash vai se lembrar da personagem principal de A Vingança de Jennifer (I Spit In Your Grave, 1980, Dir Meir Zarchi). O próprio cenário do deserto nos lembra outros filmes, muitos para citar aqui. À princípio, esse cenário junto de uma personagem com o mesmo nome poderia indicar a falta de originalidade de Fargeat. Porém, ao colocar logo de cara esses elementos, a diretora foge de qualquer acusação, pois seu filme é uma homenagem a outros cineastas que enveredaram por esse caminho.
Mas esse é um filme de uma mulher, sobre os males que, na grande maioria das vezes, acontece só com as mulheres. O primeiro ato do filme pode até ser chamado de “masculino” – ainda que eu tenha problemas com esse tipo de divisão. Então Jen, como objeto de desejo de Richard (Janssens) tem detalhes do seu corpo filmados como qualquer filme que mostra a mulher apenas como objeto, com closes nas pernas, bundas e uma ligeira nudez. Isso funciona como um desafio ao espectador masculino – se não inteiramente, pelo menos principalmente. Ela está numa viagem na condição de amante, sabe disso, e é uma escolha dela. E esses primeiros momentos são a visão de Richard sobre Jen.
Isso continua com as presenças indesejadas de Stanley (Colombe) e Dimitri (Bouchedè), amigos de Richard que, inconvenientemente, chegam mais cedo. Jen gosta de ser quem é, gosta de dançar sensualmente, e essa ficção faz paralelo com um dos maiores motes do feminismo – uma roupa não é um convite e uma dança também não é. A questão é que Jen não vê motivos para deixar de ser ela mesma, tanto que até um café da manhã preparado por Stanley é recusado por parte dela. Apesar da situação não poder ficar mais clara, o caçador se acha no direito de violenta-la – e com a conivência dos outros. Com isso, Fargeat usa arquétipos do mal de uma sociedade que ou ignora os pedidos de socorro, se omite ou prefere ficar do lado dos amigos mesmo por atos repulsivos.
São os detalhes que fazem o filme valer a pena. Como mulher, a diretora não mostra a cena do estupro, assim não o faz de fetiche. O cenário branco ou arenoso entra em contraste com a violência que segue e até o figurino é pensado em questão de contrastes – como, por exemplo, Jen vestindo uma camiseta azul nada sexy enquanto Stanley entra em seu quarto. Ou ainda pequenas frases, como uma de Richard se justificando porque está com Jen (“Se as crianças não estivessem em casa…”, como isso não fosse também responsabilidade dele), ou ainda reduzir a jovem pela sua aparência como burra e puta. São momentos de revolta, coisas que servem para deixar a plateia incomodada – e que ligam um grande alerta, algo que parece não se refletir quando falamos da realidade.
O que se segue é uma quantidade de sangue digna de qualquer filme de Tarantino ou de Psicopata Americano (American Psycho, 2000, Dir Mary Harron). Junto com o uso de signos para mostrar a ressureição de Jen depois de ser traída pelo namorado, onde a fênix é esse símbolo, a vingança de Jen segue um caminho conhecido, esperado até, mas com algumas quebras de expectativas. Nós sabemos que para sobreviver, ela tem que contar com a soberba de seus perseguidores e com a sorte. A primeira seria uma saída mais simplória, então a diretora nos dá falsas sensações de conforto, como se as coisas pudessem ser resolvidas de maneira fácil. O que Fargeat faz, por meio de uma ficção, é dizer que ser mulher nessa sociedade não é coisa fácil, e que é preciso fazer o que for para sobreviver.
E por se tratar de ficção, Fargeat pode fazer tudo, até mesmo justiça – afinal, Tarantino pôde explodir Hitler. E é curioso fazer uma pausa aqui. Em volta dessa (enorme) poça de sangue que se forma, a diretora traz um discurso. Não são três homens em especial que viram a caça de Jen, mas os três são aspectos da sociedade que merecem ser punidos. Claro que em nome do entretenimento, esses castigos sejam equivalentes ao sofrimento de Jen, que farão alguns se revirar da cadeira. E as punições são, simbolicamente, apropriadas: o jeito que a omissão e a violação são punidas parecem fortes à princípio, mas não podemos esquecer que cinema em si carrega simbolismos, e não quer dizer que a diretora endosse justiça com as próprias mãos.
Porém, Fargeat diz sim que ela e outras mulheres – ou até grupos minoritários – podem sim fazer o que for preciso para se defenderem, ainda mais contra predadores sexuais. É uma situação de extrema, a velha história do matar ou morrer. E naquele cenário arenoso que entra em contraste com o sangue (muito, já mencionei isso?) a produção é quase uma fábula, uma história com uma lição de moral que deve ser entendida mais pelo valor simbólico ao invés da imagem: a questão é que a diretora usa da violência para marcar como fogo seu discurso. E pode ser até engraçado, mas essa é a típica produção que será acusada de misandria, acompanhada por aquela frase vergonhosa, “mas nem todo homem”.
Existe um dizer, claramente feito para incomodar, que todo homem é um potencial estuprador. Isso não quer dizer que todo homem seja um estuprador – é tudo uma questão de interpretação de texto. Com Vingança, Fargeat leva essa problematização à máxima potência, falando de violência doméstica, slutshamming e outras degradações que mulheres sofrem por serem mulheres. E não adianta vir com discurso contrário porque isso é uma realidade. Talvez obras como essa abram mais os olhos de quem negue – e se outras puderem vir com essa interessante roupagem, melhor ainda. Ela pode incomodar um tanto por causa da quantidade de sangue falso que é jogada na tela, mas são esses exageros que não vão deixar a história sair tão cedo da nossa cabeça.
Elenco
Matilda Lutz
Kevin Janssens
Vincent Colombe
Guillaume Bouchède
Direção
Coralie Fargeat
Roteiro
Coralie Fargeat
Fotografia
Robrecht Heyvaert
Trilha Sonora
Rob
Montagem
Coralie Fargeat
Bruno Safar
Jérôme Eltabet
País
França
Distribuição
Rézo Films
Neon
Duração
108 minutos
A jovem Jen acompanha o amante numa viagem onde ele irá participar de uma caçada com dois amigos no deserto. Quando as coisas tomam uma direção inesperada, a jovem é deixada para morrer. Agora uma sobrevivente, ela não vai descansar enquanto não conseguir a sua vingança.
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